A potência do teatro reside no seu arquétipo: uns diante de outros, partilhando entre iguais uma ficção. É um arquétipo democrático, um lugar de polémica sem espaço à demagogia que materializa uma relação vital entre raciocínio emocional e emoção raciocinada. A presença simultânea de espectadores e actores confere-lhe uma natureza não-mítica. Proximidade e complexidade fazem do teatro, apostado na decifração de enigmas e no debate dos problemas da "cidade", a arte não-instrumental por excelência. A chegada ao Dona Maria de uma hipotética via manipuladora da cultura teatral e populista, a verificar-se, será apenas mais um passo na regressão cultural em marcha. Mas o teatro é uma cultura fundadora das bases civilizacionais do mundo, não vai atrás do fácil (por vezes hibernando mesmo): os mitos gregos já problematizavam toda a nossa existência, como dizia Muller. Em As Aves, Aristófanes estigmatiza a relação da velha política com a corrupção. Recentemente, Luca Ronconi, o actual director do Piccolo Teatro de Milão, viu a sua Paz proibida por Silvio Berlusconi. Estas características do teatro não têm servido as "políticas" mais recentes, apostadas em formas dóceis, parateatrais, high-tech e manipuláveis, e no êxito popular mediático. O teatro é rebelde, não se ajeita ao "pronto a inovar" que deifica o efémero e faz tábua rasa do passado. E os problemas, agora que o copo de água parece transbordar, são muitos e extravasam a questão do D. Maria.
Fernando Mora Ramos, jornal PUBLICO, 16.01.6
[A entrevista de Carlos Fragateiro ao jornal Expresso (14.01),] oscila entre o puro ridículo e o patético. E augura o pior para a direcção do Teatro Nacional. Em primeiro lugar, a onda de contestação que a sua nomeação suscitou "não o incomoda nada". Fragateiro considera que as pessoas falam do que não sabem, que foi vítima de ataques por ter posto em cena uma peça do nosso actual ministro dos Negócios Estrangeiros e que os que neste momento o põem em causa são "um pequeno núcleo com gente significativa que tem acesso à comunicação social" e que possui um estatuto algo mafioso: "Gente que tem poderes que vão para além dos poderes visíveis à luz do dia mas que não representa a maioria da classe teatral." É inevitável, porque faz parte da condição humana: ninguém aceita que seja objecto de uma opinião negativa por motivos estritamente objectivos. Tem que se imaginar sempre um complot, uma conjura sinistra que se passa na sombra, nas catacumbas, longe da luz do dia. Porque, pensam, existem lobbies. Admito que existam lobbies, embora neste caso a diversidade e quantidade de pessoas tenha sido tão grande que estamos um pouco naquela hipótese borgesiana em que o mapa tem o tamanho do território que cartografa. Mas adiante: cada um escolhe as defesas de que precisa, e se estas consolam Carlos Fragateiro, admitamos que ele diga com um panache quixotesco: "Sinto-me no combate entre a ignorância e o conhecimento." De acordo, mas resta saber de que lado está.
Eduardo Prado Coelho, jornal PUBLICO, 18.01.06
Consumada a substituição de António Lagarto por Carlos Fragateiro no Teatro Nacional D. Maria e entregue no gabinete do primeiro-ministro a Carta Aberta subscrita por mais de 1800 cidadãos, será que há "caso encerrado"? Interessará à ministra da Cultura a insinuação de que estava em causa apenas a substituição de pessoas e eventuais interesses associados, quando o que se questiona sim, em termos processuais e políticos, é toda uma desorientação gravosa e a falta de ética e de conhecimento das coisas dos (ir)responsáveis da tutela. (...) Essa é uma questão gravíssima, ainda mais agudizada pelo flagrante desrespeito das bases programáticas com que o PS se apresentou ao eleitorado e do consequente programa do Governo. Manifestamente, a ministra não sabe responder à óbvia contradição com o disposto no programa, no sentido de avançar "para formas de recrutamento e actividade das direcções artísticas que as tornem menos dependentes da lógica de nomeação governamental directa e mais distintas das funções de administração". (...) Perante as novas dinâmicas e dados de ordem territorial, perante a flagrante incapacidade da actual equipa da Cultura de pensar o "funcionamento em rede" que até é trave-mestra do programa do Governo, não será tempo de reunir contributos e avançar para formas de mobilização, discussão e levantamento, de estabelecer um horizonte como uns Estados Gerais da Cultura?
Augusto M. Seabra, jornal PUBLICO, 19.01.06
7 comentários:
Estamos a chegar a algum lado. começa aparecer uma luzinha ao fundo do túnel. Apesar da polémica se ter dissipado, o decontentamento é patente em quase toda a classe artística(excepto alguns dos que possam lucrar com a actual situação)e está a conscencializar a sociedade civil para a questão da politica cultural. Estados Gerais da Cultura. Vamos a isso.
E Carlos Fragateiro? desde o expresso que não fala. E o Ricardo Pais? É colocado no meio da polémica e não se pronuncia? não nos podemos vcalar.
palavras tão sábias as do fernando mora ramos! tão sábias!
concordo.
O Freitas do Amaral ainda tem uma peça escrita que não foi levada a cena, chama-se África. Leram a entrevista do Fragateiro, aquela dos triangulos e de alguém a viajar pelo mundo na internet? ele falava também na aproximação a Africa. está explicado.
O Ricardo Pais já falou. disse na sic que que a exoneração do lagarto era ilegal e nem comentava o fragateiro...
não é mesmo para comentar.
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