sexta-feira, janeiro 27, 2006

Corpos sem órgãos

Critica a A dificuldade em se exprimir,
de Luis Castro/Karnart



Quem chegue para ver A dificuldade em se exprimir sem ter visto Satirotic terá um encontro inesperado. De facto, e sem se confundirem as diferentes estratégias de cada espectáculo, a primeira parte introduz o espectador no vocabulário dos corpos, no erotismo e na pornografia, através de um percurso e habitação de espaços onde a disponibilizaçãodo espectador se faz a partir da proximidade, da descontracção e do humor.

Em A dificuldade de se exprimir inverte-se essa tendência, pela utilização do dispositivo teatral convencional que obriga os espectadores a concentrarem a abertura criada, o recente domínio dos espaços da casa, para ficarem condicionados aos seus lugares sentados, na plateia. Esta pequena tensão contribui para a percepção de uma encenação assente na criação de marcações rígidas, sem recurso a adereços, e na apresentação do texto. Esta austeridade perpassa para a presença das actrizes que se assemelham a manequins, nos momentos imóveis, com o olhar distante de quem nunca olha nos olhos.

Essa desumanização decorre, também, da utilização das lentes de contacto azuis que estranham a presença das actrizes. Em relação ao texto de Copi, trata-se de um texto delirante, visceral, quase trágico. As três mulheres são, na verdade, três homens numa casa rodeada de lobos, algures na Sibéria. A tendência em sair daquele lugar amaldiçoado pelo isolamento e pelos animais selvagens, aproxima estas personagens das Três Irmãs de Tchékhov, mas só à superfície. Estas três mulheres estão ligadas por tensões emocionais e sexuais que as aproximam e, ao mesmo tempo, as repudiam. O delírio emocional transforma-se em vertigem sensorial enquanto Irina vai destruindo o seu corpo: primeiro parte uma perna, depois uma sevícia anal, depois corta a língua. A inconsciência de Irina transforma o seu corpo num projéctil, um corpo do avesso, orgânico, desprovido de moral, de identidade e, por isso, desprovido de dor.

Enquanto o primeiro espectáculo brincava com os órgãos do corpo, o segundo concentra-se sobre o corpo projectado na sua sensibilidade. È claro que pode ser tudo mentira, tudo invenção, mas também se trata de colocar o espectador a deslizar sobre as aparências, folclore que se torna pornografia, homens que se tornam mulheres.

Pedro Manuel

ler critica a Satirotic por Eduardo Pitta

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