quinta-feira, outubro 06, 2005

O desejo de pesquisar

5º Festival Danse en Vol
Bruxelas (vários espaços)
De 01 a 29 de Outubro 2005




Michèle Braconnier é a programadora do Thèâtre de L’L, em Bruxelas, e responsável pelo Festival Danse en Vol, que este ano, entre 01 e 29 de Outubro, cumpre a sua 5ª edição, em cinco espaços da cidade: La Bissectine, Centre Culturel Jacques Frank, Recyclart, Théâtre de L’L e Théâtre de la Balsamine. Uma mulher corajosa, vibrante e de discurso rápido, que fez do seu centro cultural um espaço para a residência artística, a criação de propostas arriscadas e exercícios de difícil contextualização. Numa cidade que já foi o coração da dança, mas hoje perpetua códigos crentes de que a dança é só movimento, Braconnier assume que mais do que uma opção, programar (e insistir no seu programa) é uma razão de ser.

Começado há dez anos, o Danse en Vol, que abriu no passado dia 01 de Outubro no espaço de La Bissectine, com a apresentação de 5 dos 8 artistas plásticos convidados a responder ao desafio de criarem performances com coreógrafos/bailarinos, é uma manifestação bienal em busca de um lugar para a dança, o intérprete e o objecto artístico. E é uma proposta arriscada, já que no seu programa há uma divisão clara entre criações e performances. Como se da divisão se quisesse fazer nascer um discurso mais amplo sobre o movimento, cada vez mais preocupado com a renovação. Braconnier acredita que esta só poderá vir das artes visuais e das artes plásticas, já que são cada vez mais livres, ao passo que a dança está, de uma maneira geral, a enredar-se em códigos, nem sempre conscientes do seu lugar na criação contemporânea. Esta “procura do movimento”, é, sobretudo, uma aposta pessoal de Michèle Bracconnier em jovens criadores, dando-lhes espaço para trabalhar, abrindo-lhes portas para ‘a realidade’, e forçando-os a um confronto “o mais honesto possível” com ‘o mercado’.

Frontal e pouco terna, a programadora assume que defende os seus projectos e os seus criadores até ao limite. “Talvez como uma mãe”, mesmo que as suas expectativas como espectadora não sejam cumpridas. Assumiu-o em conversa, antes da abertura do festival, entre cumprimentos aos técnicos que chegavam, distribuição de chocolates aos criadores, e telefonemas para resolver problemas logísticos.

“Em Bruxelas arrisca-se pouco. E ninguém tem uma cultura de performances. Deixou de haver escolas, não há renovação e todos acham que podem ser coreógrafos só porque dançam”, continua. Gosta de arriscar e da aventura, e é por isso que assume o comando da programação de um festival, onde o seu nome é posto em causa, de cada vez que encomenda uma peça a um criador que começa o seu trabalho, como o português Paulo Guerreiro, de 23 anos, que, irá apresentar a sua primeira peça, Addicted Man, a 28 e 29 de Outubro, e que Michèle conheceu no Bureau International de la Jeunesse. Ou escolheu 8 das cerca de 40 propostas de colaboração entre artistas plásticos/coreógrafos que lhe chegaram: Marta Mo, Charley Case, Franck Beaubois, Antoine Defoort, Gwendoline Robin, Natália de Melo, Astrid Mussi e Patrícia Bouteiller, que se apresentarão em maratonas nos vários fins-de-semana do mês de Outubro. Ou ainda quando parece ‘provocar’ o meio artístico de Bruxelas, ao insistir na programação de novos autores que mais nenhum espaço ousa programar, como Tiago Guedes, o coreógrafo português que dia 28 e 29 apresenta, no Thèâtre de la Balsamine, Materiais Diversos, a produção de 2003. Isto porque, apesar de Braconnier ter querido programar Trio, estreado este ano, e ir tentar a programação de mais trabalho do criador, nenhum dos seus parceiros co-produtores ousou apresentá-lo, porque “não era rentável”, disseram-lhe. “No quadro do festival, muito bem, mas sem contexto…”.

E é por causa da falta de contexto, que se bate “por uma cultura de alto nível” num país onde “a cultura não tem valor”, “a performance é uma arte menor” e “ninguém ouve os novos criadores”. O Thèâtre de L’L, cujo público ronda os 18-35 anos e é assumidamente intelectual, é o único a fazer um trabalho de acompanhamento de produção, bem como ateliers de sensibilização dos públicos ou trabalho com a imprensa (“os meus dossiers de imprensa são verdadeiros livros explicativos”, diz). Tudo por uma “igualdade na cultura”, sem concessões, porque “o dinheiro dos contribuintes não deve ir todo para o mais imediato. E até agora ninguém me acusou de o gastar indevidamente”.

No caso do Danse en Vol, a programação é quase toda feita em exclusivo para o festival, às vezes sendo as obras encomendadas com mais de um ano de antecedência. “Há obviamente uma margem de risco, mas é também um perigo”. Por isso, não é porque os criadores são simpáticos ou há uma boa relação pessoal que a directora do festival os vai defender. É sobretudo porque não é possível “explicar-se tudo em palco. Há que escrever e demonstrar conhecimentos e, sobretudo, ter um discurso claro, afirmativo e legível”. Também por isso, insiste que muitos dos ensaios sejam abertos ao público, para que os criadores percebam para quem estão a trabalhar. E os resultados já se fazem sentir. Alguns dos nomes da nova geração belga de criadores começaram no festival: Thierry Smiths e Olga de Soto, por exemplo. Ou Melanie Munt, Barbara Mavro-Thalassitis e Alvin Erasga Tolentino, que voltam este ano ao festival.

Tanta energia e vontade não escondem um discurso algo amargo sobre a situação da dança na Bélgica. Este é também um trabalho contra o acomodamento. Michèle Braconier procura “novas formas para a dança”, quer “reencontrar o movimento”, e sabe que as suas escolhas “são justas”. Chega mesmo a dizer que sabe encontrar “o bom pé para o bom sapato”, mas não é artista. Contudo, afirma que nenhum programador o pode ser sem ter um discurso artístico. O seu relaciona-se intimamente com a tomada de consciência e assumir de responsabilidade da parte de quem cria.

Gosta de novos criadores, da hipótese de renovação que podem representar, do potencial que transportam para uma nova relação entre os objectos e o público, de acompanhar a nova geração. Quer, sobretudo, “dar a sua palavra”. Um programa artístico que “não quer substituir o discurso dos artistas”, nem é uma provocação, mas “uma abertura” para uma reflexão sobre a dança. Mais do que um trampolim, “uma necessidade”. Tudo porque falta aos espaços “desejo de pesquisa”.


Participação a convite do festival Danse en Vol e com o patrocínio do Instituto Camões.

Ver aqui e aqui reportagem da revista belga Le Guide sobre o festival.

O Melhor Anjo vai acompanhar a 5ª edição do Festival Danse en Vol, com a apresentação de vários textos, que serão reunidos em dossier especial. Até ao final do ano será publicado um artigo de reflexão sobre o festival, em colaboração com a revista flamenga Rekto:Verso, que o publicará em Janeiro 2006.

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