terça-feira, outubro 18, 2005

It has to do with honesty!

Viagem ao interior do DANCE – Dance Apprentice aCroos Europe

William Forsythe nas fases de selecção. Foto: J.C. Carbone. Outras fotos aqui.



Avatâra Ayuso tem 24 anos, e vem de Maiorca, em Espanha. Madeleine Lindh tem 20, é sueca, mas morava em Amesterdão. Christophe Degelin, 21, é belga. Eric Emerstedt tem 19 anos e também é sueco. Paulo Guerreiro é português, tem 23 anos e mora em Bruxelas. Em comum têm o facto de fazerem parte de um grupo de vinte e quatro seleccionados, entre novecentos, escolhidos através de audições em 14 cidades europeias e workshops intensos, para participar no projecto DANCE – Dance Apprentice Network aCross Europe, um curso de formação intensiva em dança, com a duração de dois anos, e que começou no passado dia 19 de Setembro em Bruxelas e Aix-en-Provence/Marselha, em França.

Esta iniciativa, da responsabilidade do Centro Coreográfico Charleroi/Danses, sediado no espaço La Raffinerie, no centro de Bruxelas, envolve 26 instituições (teatros, companhias de dança, escolas, fundações de fomento cultural) de 17 países, e propõe um programa de formação abrangente que, segundo Jason Beechey, coordenador-geral do projecto, quer ajudar a desenvolver uma nova geração de “colaboradores artísticos”. A expressão é utilizada atendendo àquilo que são as expectativas dos mentores deste projecto, os coreógrafos William Forsythe, Wayne McGregor, Frédéric Flamand e Angelin Preljocaj.

Beechey, ex-bailarino e actual professor na companhia de Flamand, fala de DANCE como um projecto “o mais perto da utopia possível”. Uma oportunidade para pensar que papel quer cada um destes participantes ter na dança actual.

Para este cinco “futuros colaboradores”, as razões de participação nesta aventura passam essencialmente pelo reconhecimento de que o projecto reunia a formação que outras escolas careciam. Falam de colmatarem falhas e apreensão massiva de conhecimento. Vindos de modelos clássicos de ensino, grande parte dos participantes tinha já estudado em academias estatais, trabalhado com companhias contemporâneas ou até mesmo feito algum trabalho individual.

É o caso de Paulo Guerreiro, que fez a audição em Bruxelas e no fim do mês de Outubro apresenta a sua primeira criação, Addicted Man, no 5º festival Danse en Vol, na capital belga. Depois de ter participado em espectáculos de coreógrafos como Edith Depaule, Martin Dewez e Marie-Josée Lareau, no Bureau International de la Jeunesse, foi convidado a criar especialmente para o festival, a convite da programadora Michèle Braconnier. Agora, o jovem “criador” (as aspas são dele) português divide os dias entre as aulas de ballet clássico e workshops do curso, com os ensaios da sua peça e ainda a participação num outro espectáculo integrado no mesmo festival, Super G, da espanhola Marta Mo. “Sempre procurei entender primeiro para que precisavam do meu corpo e só depois fazer. Não acredito em repetições e exercícios vazios. Gosto da recusa. Mas de uma recusa consciente”, diz. Saiu da Escola Superior de Dança, em Lisboa, quando faltava um ano para terminar a licenciatura, porque não encontrava nos argumentos e linguagens da escola, uma essência que lhe pudesse responder clara e objectivamente ao conflito criação/objecto. Decidiu ir para Bruxelas, à aventura.

O caso de Paulo parece cumprir na perfeição aquilo que os organizadores do curso procuravam: “pessoas que tivessem algo a dizer, algo para fazer, fossem espontâneos e os que mais beneficiassem desta troca de experiências”, diz Jason Beechey, no intervalo das apresentações finais dos duetos e solos que Claire Cunningham, assistente de Wayne McGregor, da companhia britânica Random Dance Company, coordenou, no primeiro workshop de criação, que decorreu na segunda semana de aulas, e foi dedicado à relação entre a coreografia e a concentração em frente a uma câmara.

Esta vertente multidisciplinar que o DANCE quer imprimir ao curso, relaciona-se com dois aspectos. Diz Beechey: “o primeiro tem a ver com o facto de nenhum dos criadores envolvidos ter alguma vez pretendido criar uma escola. Isso liberta este projecto de um peso institucional e permite criar outras dinâmicas na relação com os alunos. A profissão encontrou a escola e não o contrário. O segundo aspecto relaciona-se com a criação das ferramentas para que possam pensar por eles próprios”. Por isso mesmo, os alunos terão acesso a um universo de formação, onde se inclui naturalmente a dança, apresentada nos seus diversos registos, mas também na sua relação com a arquitectura, o teatro e o cinema. Ou a aprendizagem e desenvolvimento de técnicas de prevenção e aquecimento, estéticas complementares, som, multimédia, e até religião, aulas de línguas e noções de direcção artística e produção. Porque, continua o coordenador-geral, “a coreografia é um processo de pesquisa”.

Esse processo é o que interessa à espanhola Avatâra Ayuro que está interessada em “absorver, absorver, absorver”, diz ela, enquanto observa os colegas na aula de ballet, já que torceu um pé no início da semana. Fez a audição em Londres porque “procurava outro vocabulário para o meu corpo. Fiz ballet clássico e contemporâneo, mas descobri que sou sobretudo uma técnica”. E para Avatâra, a dança é isso mesmo: “técnica. Dança é movimento. O teatro-dança é uma tese difícil”. Por isso, quando terminarem estes dois anos de formação, quer iniciar uma carreira que termine no ensino, o seu verdadeiro objectivo. Na verdade, Avatâra tem um objectivo mais ambicioso: “em Espanha a dança não é levada a sério, não tem categoria. Quero ajudar a mudar isso”.

A descoberta de uma organização

Na sala que fica num dos pisos da La Raffinerie, uma antiga fábrica de açúcar que em 1979 foi recuperada como espaço de criação pela companhia Plan K, de Frèdèric Flamand, e hoje é um dos mais utilizados centros de pesquisa e aprendizagem da região de Wallonnie-Bruxelles, a aula de ballet, orientada por Beechey já começou. É sempre assim o início dos dias para este grupo de doze alunos que compõe o ‘grupo do norte’. À mesma hora, na Escola Superior Nacional de Dança de Marselha, um outro grupo de doze alunos segue o mesmo programa, sob orientação do italiano Emílio Catalano. O ‘grupo do sul’ virá para Bruxelas no dia 22 de Outubro, permanecendo na capital belga ao longo dos dois anos que dura o DANCE. Troca assim com este grupo, onde para além de Avatâra, Paulo, Madeleine, Christophe ou Eric, existem elementos de outras nacionalidades: França, Suiça, Turquia, Eslovénia, Alemanha e Itália, num conjunto de idades que vai dos 18 aos 26 anos.

Ao fim da segunda semana de curso, os contactos pessoais ainda estão no início e o à-vontade constrói-se sustentado na dificuldade dos exercícios ou na cumplicidade de quem se sente pouco à vontade com pliés, pirouettes ou movimentos na barra. Há os que nitidamente não conseguem encontrar no corpo um espaço para a normatividade clássica, e outros que transpiram virtuosismo. Jason Beechey exige que pensem no que estão a fazer. Insiste na coordenação, repete os movimentos, sorri para o espelho onde todos se vêem obrigados a um confronto com os movimentos pouco precisos e ainda presos à preguiça matinal. “Preciso ver aquilo em que estão a trabalhar”, diz ele, antes de mais uma série de movimentos. “Os seleccionados precisam saber e ter a consciência que entre novecentos candidatos, há uma razão pela qual foram escolhidos. Eram estes, e não outros. O processo foi rigoroso e o mais atento possível. Apareceram pessoas que não tinham emprego, gente sem qualquer talento ou outros que não precisavam do curso”, enfatiza Jason. A expressão que utiliza para definir o conjunto dos participantes diz tudo acerca do que este projecto quer fomentar: “this is a creative outlet!”.

Eric e Madeleine, os dois participantes suecos têm a mesma base, a Royal Swedish Ballet School, mas têm objectivos diferentes. Madeleine, cuja audição decorreu em Amesterdão, tem o nítido discurso de quem está deslumbrada pela dança contemporânea. Constrói sequências coreográficas com a ajuda de poemas e obriga-se a um rigor e precisão que a faz desistir caso alguma coisa não seja do seu agrado. Na repetição do dueto que criou com Eric, baseado na técnica de Wayne McGregor em que um ponto e uma linha devem construir uma estrutura coreográfica legível e ordenada, abandonou o palco porque trocara a ordem de um dos movimentos. Quer perceber como são desenvolvidas as técnicas, como pode relacionar o corpo com as palavras e potenciar “uma linguagem corporal única”. Fala dos quatro coreógrafos envolvidos como “génios”, e sabe que a única coisa que quer é “aprender o mais possível”. Talvez para criar, mas sobretudo para se “conhecer”.

Já Eric, menos preocupado com a exactidão do exercício, a única certeza que tem é que esta é “uma oportunidade única”. O jovem sueco, que começou por fazer dança de competição e teve contacto com o DANCE em Estocolmo, quer apostar em várias frentes: a criação e o trabalho com uma companhia. Considera que a escola lhe pode dar muito mais e, por isso, espera que as dificuldades financeiras (às quais todos estão sujeitos) não sejam impeditivas para a sua permanência no curso. Para já, tanto Eric como Madeleine aguardam uma resposta das instituições suecas.

Durante a fase em que ainda permanecem em Bruxelas, os doze alunos têm um apoio do Charleroi/Danses, na organização do dossier de apresentação do projecto, pedido de apoio, procura de casa para quando chegarem e Marselha e aulas de francês. Mas nem todos podem contar com o apoio dos seus países. Paulo Guerreiro bateu a todas as portas que podia e conhecia em Portugal. Mas as respostas foram invariavelmente as mesmas: dificuldades orçamentais. Por isso, aguarda pelo fim do ano para voltar a tentar. Tem consciência que o horário de trabalho que o curso exige não lhe permitirá ter tempo para acumular com outras actividades, pelo que espera que as instituições recuperem e abram novos concursos.

Os alunos têm um apoio do programa Leonardo da Vinci, da União Europeia, para os dois anos. Uma bolsa de cerca de dois mil euros que servirá para pagar a deslocação para Marselha e suportar as primeiras despesas. Mas o curso não lhes prestará qualquer outro apoio para lá da aprendizagem. “É um investimento da parte deles. Nós entramos com os conhecimentos, eles entram com a vontade de saber.”, diz Jason, para concluir que “os alunos são responsáveis por si”. Tanto Eric como Madeleine acreditam que conseguirão apoios estatais. E dão o exemplo da Dinamarca que, mesmo não tendo qualquer aluno seleccionado, é um dos países que contribui para o projecto.

As contribuições que cada um dos países ou instituições presta, explica Beechey, não estão todas ao mesmo nível. Há as que entram com material humano e logístico, através de trocas e parcerias, como o caso Universidade de arquitectura IUAV, em Veneza, com a qual foi feito um acordo com a companhia de Frèdèric Flamand, permitindo, assim, que futuros arquitectos estudem noções de movimento e coreografia, e os alunos do DANCE pensem a relação da dança com a arquitectura. Ou as que cedem instalações, professores, estágios ou até mesmo só o nome, como a companhia de William Forsythe, que para o dossier do projecto escreveu que a sua contribuição “para um projecto dinâmico e diverso só poderá ajudar os intérpretes a desenvolver uma expressão artística”.

Christophe, o jovem belga que fez a sua audição em Londres, acredita que os coreógrafos envolvidos “sabem o que um bailarino precisa para encontrar trabalho”, pelo que quer “perceber como trabalham” para criar a sua própria linguagem. Diz sem reservas que é um bailarino, mas garante que quer ver muita coisa antes de decidir se começa a trabalhar como coreógrafo ou procura entrar dentro de uma companhia. O exercício que apresentou no âmbito do workshop de coreografia e concentração para a câmara, denuncia um trabalho de precisão corporal, consciente do modo como o espaço individual influencia o movimento.

Claire Cunningham, a orientadora do workshop, consciente do potencial dos participantes, diz que esta semana com os alunos do DANCE lhe abriu novas perspectivas para pensar o modo como trabalha. O objectivo deste workshop era também o de preparar este grupo para um encontro mais desenvolvido com o coreógrafo inglês Wayne McGregor, em Janeiro de 2006. Fala do modo como eles se abriram às propostas e trouxeram o seu universo para os breves exercícios solicitados. E também da capacidade que têm para ouvir e aprender. Acha, sobretudo, que o DANCE é “um belo início”. Jason, entre as apresentações, vai aplaudindo e tomando notas. Escreve palavras breves que depois desenvolverá em conversa com Claire e McGregor. E, sobretudo, vai observando o modo como os alunos se organizam. Dentro do projecto, entre eles, mas especialmente, como procuram o seu próprio modo de expressão. “É difícil. Tem a ver com honestidade”, insiste.

Um caminho

Para este grupo, bem como para os outros doze que se encontram em Marselha, começa um período de descobertas, de aprendizagem e de construção de uma forma de encarar a dança. Sejam intérpretes, criadores ou colaboradores, acabam, inevitavelmente, por se obrigar a uma reflexão sobre o papel que as escolas têm na formação de novas gerações de agentes culturais. Uma responsabilidade partilhada não só pelo conjunto de escolas, mais ou menos alternativas, mas também pela comunidade da dança que é constantemente obrigada a reflectir sobre o lugar do corpo, do intérprete, do discurso e do modelo de afirmação.

Se a presença de nomes como os de William Forsythe ou Angelin Preljocaj podem encher um dossier de projecto com elogios e garantia de um nivelamento artístico já reconhecido, tal não significa que não se deva projectar no futuro o lugar destes jovens no mundo da dança. Jason Beechey diz que ainda é cedo para falar, “talvez daqui a dez anos”, mas a verdade é que, numa altura em que, mais uma vez, a dança se vê obrigada a arrepiar caminho em tendências, vogas e manifestos, é fundamental perceber que bases estão a ser criadas. Também porque essas bases irão obrigar a um questionar do discurso dos coreógrafos envolvidos, uma vez que estes são os primeiros a recusar a criação de gerações futuras que se limitem a copiar as suas técnicas.

Reside num discurso partilhado a razão de ser de um projecto com estas características. Qualquer um destes doze participantes tem ambições, umas mais vastas que outras, mas certamente que nenhum deles acredita que o lugar já está conquistado, só porque entraram num projecto com estas características. E, no limite, estão também a lançar recados às instituições dos seus países sobre os métodos de ensino, estratégias de apoio, colaborações artísticas e modelos de perpetuação de códigos pouco condicentes com as exigências do mercado.

Para já, Avatâra, Paulo, Eric, Christophe e Madeleine preparam as malas para Marselha. Alguns não sabem ainda como se vão sustentar durante dois anos, mas sabem certamente, que este é um caminho sem retorno.


Tiago Bartolomeu Costa viajou com o patrocínio do Instituto Camões

O Melhor Anjo vai acompanhar o desenvolvimento do projecto DANCE ao longo dos próximos dois anos. Mais novidades brevemente.

2 comentários:

aL disse...

um momento de publicidade institucional, lol

Anónimo disse...

Very nice site!
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