terça-feira, agosto 09, 2005

Longa caminhada

Análise a Riders to the sea
Ópera em 1 acto
De Ralph Vaughan Williams
A partir da peça de John Millington Synge
Encenação: André e. Teodósio
Forúm Romeu Correia, Almada
29 Julho 2005
21h30
Meia sala


A abordagem à ópera Riders to the sea pode ser assente em três pontos: a proposta em si mesma, o modo como lança pistas para a compreensão do trabalho desenvolvido pela estrutura onde o encenador André e. Teodósio tem sido regular presença, como actor e co-criador, o Teatro Praga, e o contexto operático nacional, onde o Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística - Curso de Encenação de Ópera pretende intervir, e no âmbito do qual este trabalho se desenvolveu e estreou a 19 de Outubro de 2004.

Estas três linhas permitem a inscrição da encenação da ópera de Ralph Vaughan Williams (1872-1958) num contexto mais alargado do que a simples análise crítica individual. Acredito que ao se pensarem os objectos, em relação ao conjunto e envolvente, se contribuiu para um resgatar da efemeridade inerente à criação artística.

Esta ópera em um acto, feita a partir da peça homónima de John Millington Synge (1871-1909), apresenta uma narrativa crente numa ideia de resistência e luta face a poderes maiores, no caso, um confronto entre o Homem e a natureza. Sendo que aqui, nos campos opostos da luta se encontram forças femininas: a mãe, Maurya (Juliana Mauger), e o mar, elemento tão generoso como castrador. De um realismo apostado na utilização dos dialectos e costumes das gentes piscatórias, esta não é uma obra que apresente modelos de virtude ou faça depender uma resolução da acção divina. É um trabalho que depende da maturação do indivíduo, e posterior resignação, face a elementos mais poderosos, sabendo exactamente que, como tudo, também o sofrimento tem um fim. No caso de Maurya, e após a morte do marido e dos filhos, o mar já nada pode contra ela.

Se a acção é aparentemente simples, naquilo que parece ser uma recusa ao simbólico, mas ainda consciente de uma dimensão metafórica, o espaço desenhado por Teodósio, seja por questões orçamentais, de formato ou estéticas, apresenta-se limpo de adereços e cenários. A cena é aberta para os bastidores e os únicos elementos que denunciam uma alteração do regular e formal comportamento operático, são três cadeiras deitadas no chão, enquanto outras cinco são dispostas, de frente para o fundo da cena e do lado esquerdo do palco, fazendo os intérpretes cantar de costas para o público. A subtileza do desenho cenográfico é sinal de que o espaço (nas suas mais diversas amplitudes) será matéria de exploração dramatúrgica.

O ambiente é de negrume, feito de uma colaboração entre os habituais panos pretos de cena e os figurinos. Também o desenho de luz sombrio, potenciado pelas projecções de excertos de filmes de Robert Flaherty, Michael Powell, Sergei Eisentein e Artazazb Pelechian acerca das pescas e das gentes da Irlanda, seleccionados pelo encenador após sugestão de André Godinho (o realizador do documentário/making off Riders, que também passou nesta sessão), contribui para acentuar o tom dramático (e catastrófico) da peça.

Toda a proposta se sustenta num pertinente e estimulante equilíbrio entre a projecção e uma acção em palco concentrada em três pontos: ocupação, limitação e equilíbrio no espaço. Nesta permanente alteração do papel de condutor e ilustrador, projecção e cena são palco para uma curiosa (porque possível) articulação entre tragédia e naturalismo, na qual a procura da teatralidade não quer significar uma cedência à personagem. Ideia aliás defendida pelo encenador Christian Gangneron, que orientou as óperas deste programa de criação, e que, no vídeo, procurava entender a que se referia André e. Teodósio quando falava na importância do texto enquanto elemento pleno de carnalidade.

É essa ideia de noção da carne (da massa corporal) e dos efeitos que um texto, seja libreto ou peça, deve provocar em quem o interpreta, que classifica Riders to the sea como um exercício de estilo confrontacional entre práticas performáticas de base comum, e nas quais se devem manipular as especificidades em nome de um objecto meta-cénico. E daí ser relevante que a proposta de André e. Teodósio passe por uma apropriação do corpo do intérprete trabalhada em função do espaço que ocupa em cena, em vez de um desenho mais vasto que facilmente pudesse denunciar a espiral de loucura na qual se parece envolver Maurya.

Na verdade, os corpos dos cinco intérpretes (as duas filhas de Maurya, Nora (Carla Simões) e Cathleen (Filipa Lopes), o filho que em breve morrerá, Bartley (Rui Baeta) e uma mulher do povo (Catarina Braga)) são trabalhados a partir de uma rigidez performática, para a qual, mais do que se convocar um trabalho psicológico e interior brechtiano, se força a colagem da vida e sentimentos da personagem à pele do intérprete. A exploração da palavra e a necessária justificação ad nauseaum do gesto, por mais mínimo que seja, fixa esses corpos num estreito e delicado conflito entre a projecção, a narrativa e a música. E essa leitura fatalista (porque contrária à dramaticidade amplamente visível na narrativa) parte do que é defendido pelo encenador no texto do programa: "O desmantelamento do ambiente real, com a consequente desorientação espacial e temporal, voltará a colocar o corpo como centro do mundo circundante. Dirigimo-nos para o controlo de um espaço ego-centrado, introvertido e não, como no passado, de um espaço exo-centrado.".

E é neste ponto, o do controlo do corpo da personagem pelo corpo do intérprete, que Riders to the Sea lança luzes para a interpretação de algumas linhas fortes do trabalho do Teatro Praga. Se para os cantores de ópera (como aliás é bem patente nesse vídeo, Riders), a ideia do gesto ser por si um acontecimento justificado e não uma ilustração da frase musical pode soar estranha, para um actor, o corpo deve ser consciente das mensagens que envia. Sobretudo se for trabalhado numa fronteira de ausência de psicologismo ou teatralidade. Logo, a exposição do corpo do intérprete passa a ser uma existente em função não das necessidades da personagem, mas da leitura individual que o intérprete faz da personagem. E, sobretudo, uma abordagem que se quer integrada no conjunto performático.

O Teatro Praga tem procurado inscrever as suas propostas numa reflexão ampla sobre o lugar do actor no objecto artístico que, ao mesmo tempo que procura compreender as fronteiras da criação e da vivência, procura também atribuir responsabilidades, não só ao criador, mas aos objectos convocados, ao público e à envolvente. Nesse sentido, esta ópera de André e. Teodósio, ainda que sendo inscrita num quadro restrito de criação, explora essas linhas de trabalho numa área performática plena de códigos, regras e formatações que, no limite, hierarquiza contribuições. Esta "tentativa de construção narrativa sem dogmatismos ficcionais/realistas, [e] a reformulação de um fazer teatral regente na criação operática estabelecida/institucionalizada", dá aos objectos cénicos uma dimensão menos finita, mais consciente da problemática utilidade/funcionalidade e, sobretudo, em permanente e amplo diálogo, seja entre si (os criadores) ou para si (os espectáculos).

O que nos leva para o terceiro ponto desta abordagem: o contexto de produção e envolvente artística. Produzida no âmbito de um programa vasto de intervenções (cinema, dança, teatro em 2004), os Programas Gulbenkian de Criatividade e Criação Artística querem contribuir para um evoluir não tanto da produção, mas do desenvolvimento de potencialidades criativas. Nesse sentido, este programa de 6 óperas certamente procurou dar aos envolvidos condições de criação que são raras em Portugal.

Não só porque a ópera continua a ser considerada como um bem raro, mas também porque a relação que estabelece com o restante tecido criativo é relativa, esta aposta da Gulbenkian tem a correr contra si a falta de alternativas. Ao nível da produção (e não é por acaso que estas 6 óperas circulam tão pouco, e Riders to the sea ainda menos esta foi uma apresentação da ArteEmRede), e no que diz respeito ao leque de opções de intérpretes. Com o anúncio há alguns meses atrás do possível fecho do Estúdio de Ópera, estrutura da Casa da Música, e sem uma verdadeira prática versátil no Conservatório Nacional (uma que dê aos intérpretes a dimensão teatral que se procurava dimensionar nesta ópera), dificilmente se consegue antever uma continuação de trabalhos exploratórios e evolutivos. Por outro lado, o facto do Teatro Nacional de S. Carlos ser a única entidade, e sob frágeis condições, a apresentar uma programação de ópera, este pode ser um programa que, isolado, pouco poderá fazer pela mudança de mentalidades, costumes, métodos, práticas e acessos. A potenciação de novos valores nesta área (ainda mais frágil que as outras performativas) pode ser, à primeira vista uma mais valia e um estimulante contributo, mas certamente será pouco se os envolvidos forem abandonados ao fim da primeira criação.

1 comentário:

João Amaro Correia disse...

vi a apresentação, em novembro, na gulbenkian. gostei imenso!
e levei 3 meses a encontrar o cd neste país!