quarta-feira, junho 15, 2005

O corpo e o templo

Análise à proposta do Ballet du Grand Théâtre de Genève para o 40º Festival de Sintra
10 e 11 de Junho
Centro Cultural Olga Cadaval
21h30

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Loin, de Sidi Larbi Cherkaoui. Foto: Ariana Arlotti

Talvez não seja anacrónico afirmar que fé e corpo compõe o desenho dramatúrgico que se pode fazer ao conjunto de propostas do programa do Ballet du Grand Théâtre de Genève, na abertura do 40º Festival de Sintra. As três peças cruzam um discurso assente em estruturas performáticas promovendo uma ideia de crença religiosa que encontra no corpo e nas suas reacções uma linguagem, que mais do que procurar fixar comportamentos e tendências, antes sugere uma universalização de sentimentos e um outro modo de partilha de intenções.

O virtuosismo dos intérpretes é palco para experiências ao nível da hipnose e transcendência que só a fé parece conseguir, sendo que isso permite equilibrar dois registos coreográficos diferentes. Ou seja, um encontro entre o clássico e o contemporâneo, no que isso significa de difícil passagem e transição entre uma escrita performática assente em cânones e outra que se apropria deles para fazer seus os diferentes modos de ser intérprete. Isto é também uma linha que se permite a ser potenciada quando observamos os diferentes backgrounds (culturais e referenciais) dos coreógrafos reunidos neste programa. Para-Dice (2002), do coreógrafo japonês Saburo Teshigawara, constrói-se como exercício de libertação de energia no qual os bailarinos desenvolvem uma estrutura harmónica, a partir de um transvestir do movimento clássico.

Assente numa coreografia cardinal, quatro homens e quatro mulheres apresentam-se em fatos unicolores que fazem dos movimentos sequenciais uma intensa paisagem de repetições, à qual não é alheia uma composição musical, de Willi Bopp, feita de samplers e mutações que envolve o espaço numa espécie de floresta negra e quase secreta. Esta sugestão de dança pagã carrega uma dimensão religiosa e etérea numa comunhão de espírito e movimento, onde cada um encontra através da sua individual consciência e dimensão corporal, um modo de conjugar o 'eu' crente. Dividindo-se em dois grupos (masculino e feminino), os intérpretes pouco se cruzam, mas quando o fazem esquecem diferenças de género e forçam uma intenção de assexualidade que tem mais a ver com uma ideia de elevação que uma de materialização terrena e humana. Será por isso que já no final, os bailarinos parecem sugerir uma metaformose em animais e são engolidos pelo negrume das luzes, antes expostas e quase solares.

Já em Selón Désir (2004), trabalha-se uma ideia de conflicto masoquista entre o aprisionamento e o prazer. O coreógrafo grego Andonis Foniadakis instala uma suspensão de colunas de som em toda a dimensão do espaço fazendo das aberturas das Paixões de S. Mateus e S. João, de Bach, um coro de lamentos ainda mais agudo, que se reflecte no corpo da bailarina que parece reagir de forma epidérmica e aparentemente descontrolada. Mas esta reacção não é mais que um desenho da manipulação sugerida pelo trabalho sonoro de Julien Tarride, que se alicerça na distanciação e coreografia das próprias colunas. Ao estabelecer dois planos de acção, o coreógrafo efectiva uma ocupação de espaço que o faz claustrofóbico. Os corpos deixam-se arrastar num torpor crente, presos que estão na incapacidade de serem para lá dessa massa finita e mortal que os compõe.

Poderá dizer-se que nesta peça a dimensão feminina é mais presente, sobretudo pela capacidade de reconhecimento de uma lógica bacantiana na qual, por entre a agitação do movimento os intérpretes encontram um modo de expressarem uma certa sensibilidade relacionada com a oferenda e sacrifício. Novamente não interessa aqui quem compõe os pas-de-deux ou conduz a acção, mas antes a possibilidade de encontrarmos num momento da coreografia espaços de partilha íntima que 'aliviem' da extensa luta em que a peça se desenvolve. Esta é ainda uma proposta que se permite a uma margem de observação, como quem procura tomar fôlego para entrar na 'roda do prazer'. Os bailarinos abandonam a 'personagem' aos cantos do palco, observando o movimento feérico dos pares.

E é em Loin (2005), a proposta de Sidi Larbi Cherkaoui que melhor se potencia todo um cruzamento entre a individualidade do intérprete e a sujeição a uma estrutura coreográfica comum e austera, que a espaços funciona também como metáfora para as relações humanas em sociedades opressivas. A peça do coreógrafo belga-marroquino é também uma dança de reconhecimento, uma vez que os intérpretes são utilizados para trabalhar uma ideia do 'outro como extensão de mim' e o equilíbrio de um sentimento na presença de terceiros. A proposta (a única a instalar um cenário e feito de panos com motivos árabes) começa por mostrar os bailarinos em pares, operando delicadas movimentações de braços e olhares em que mantendo os corpos a uma relativa distância não se anula uma ideia de proximidade. Mãos, braços e cabeça funcionam como elos de ligação entre dois seres presos de forma quase umbilical, mas afastados pelas inerentes individualidades e diferenças.

Por isso, quando para comporem um nítido pas-de-deux sexual, dois bailarinos têm que atravessar os corpos dos outros, sentimos que esta é uma estrutura feita a partir da cedência, da resistência e de uma força de vontade sobre-humana. É nesse sentido que vai o espantoso trio masculino montado no final da peça: um filigrânico e resistente movimento organizado que se desenvolve para um trabalho de conjunto, parecendo representar a uniformização dos intérpretes em nome de uma crença e partilha de um todo coreográfico. Loin é ainda uma proposta contaminada pelo processo criativo e o modo como os intérpretes pensam o movimento, já que toda a proposta é cruzada por momentos de diálogo e mimese em que é dada primazia ao relato de experiências de palco. Pelo facto da companhia ser composta por elementos de diversas nacionalidades, sugere-se uma universalização de sentimentos.

No seu conjunto a proposta do Ballet du Grand Théâtre de Genève oferece a possibilidade de desenvolvimento de uma paisagem coreográfica onde há lugar para a feliz manipulação de códigos e influências performáticas. As três peças formam um coerente núcleo evolutivo que permite ao espectador reconhecer determinadas coordenadas, mas impede a fixação de um discurso. Ou seja, procura apresentar uma ideia de transcendência que dependa mais da interpretação individual (daí as recorrentes ligações ao universo pessoal dos bailarinos), do que uma paleta baça e estanque feita à medida dos gostos sedentários.

Ballet du Grand Théâtre de Genéve
40º Festival de Sintra
10 e 11 de Junho 2005 - Centro Cultural Olga Cadaval

Para - Dice Coreografia, cenário, figurinos e desenho de luz: Saburo Teshigawara Música: Willi Bopp Assistentes: Rihoko Sato, Ravi Deepres Assistente Iluminação: Simon MacColl Duração: 22 minutos

Selon Désir Coreografia: Andonis Foniadakis Banda Sonora: Julian TarrideMúsica: Jean-Sébastien Bach, Coros das aberturas das Paixões segundo S. Mateus e S. João Desenho de Luz: Rémi Nicolas Assistente de figurinos: Marion Schmid Duração: 22 minutos

Loin Coreografia: Sidi Larbi Cherkaoui Música: Heinrich Ignaz Biber, extractos das Mystery Sonatas Cenário e desenho de luz: Wim Van de Cappelle Figurinos: Isabelle Lhoas Assistentes do coreógrafo: Nicolas Vladyslav e Damien Jalet Duração: 47 minutos


Toda a programação de dança do 40º Festival de Sintra pode ser consultada aqui.
Mais informações sobre o 40º Festival de Sintra aqui.

Próximo espectáculo:
Compagnie Linga
17 e 18 de Junho 2005
Centro Cultural Olga Cadaval
21h30