sexta-feira, abril 09, 2004

Profissão de fé

onde se dá conta da experiência cinematográfica denominada A Paixão de Cristo

Em fim-de-semana santo - ou mini-férias, como lhe chamam os funcionários públicos que há muito deixaram de crer em Deus - fui à catedral - vulgo El Corte Inglés - para ver o Evangelho segundo Mel Gibson. Assim de uma assentada parece-me que o filme faz mais pela culpabilização dos fiéis do que as aulas de catequese durante a vida toda. Ao meu lado - dos dois lados - em baixo, por cima, no cinema todo, entre pipocas, sandes, coca-cola e telemóveis com toques polifónicos era ver as lágrimas correrem pela cara do mais resistente dos corações.

Não sei se é de ter visto os filmes do Cecil B. DeMille, de conhecer a Agustina, de reconhecer a iconografia secular ou de saber que AQUILO é só um filme e que bastam três minutos de um relatório da Casa Pia para ficar mais horrorizado, mas pareceu-me tudo um grande exagero. Antes de ser barroco, sepulcral, pictoricamente duvidoso e "parabolizante", o filme de Mel Gibson é tendencioso.

E é-o, não porque insista na ideia de que foram os judeus que entregaram Cristo - isso sabe-se, basta saber ler os Evangelhos - mas porque quer fazer crer que a culpa de tanto sofrimento - ou do facto daquele homem carregar tão pesado fardo - se deve à nossa incapacidade de olharmos "o outro" como um abnegado; alguém que morre pelos outros sem querer nada em troca. Em nome de. É-o, também, por seleccionar dos outros o que mais lhe convém a essa teoria. Ou seja, não se trata de um filme, mas antes de um "Evangelho-respigador"

Se estivermos atentos ao filme - por mais impressionantes que sejam as imagens, já não somos crianças e muito menos inocentes - percebemos que não é mais do que um mostruário da parafernália cristã. Está lá a coroa de espinhos carregada na cara, o santo sudário - manipulado digitalmente, na certa -, a estrela de David - repetida três vezes para o caso de não se perceber-, a primeira queda, e a segunda queda, e a terceira queda e todas as quedas - cada vez mais lentas, mais guturais, mais gráficas -, a pietà, os estereótipos, a homogeneização de posições... e até o pecado em forma andrógina - quem sabe fruto dos tempos modernos. Saber-se, depois, que Mel Gibson afirma tratar-se de uma mulher, porque o espectador deve fazer da figura uma leitura "magnética, é anular a ideia de que Cristo ascendeu aos céus como resultado dos homens e das mulheres, e não em confronto com o pecado em forma feminina. O Cristo é então, um homem; um objecto erótico - que outra leitura se pode fazer da cena em que constrói uma mesa e essa híbrida cena final - e não um objecto erotizável. Mas o erótico é pecado, e voltamos ao início.

Mel Gibson não fez um filme, mas antes insiste numa tese. A de que o Cristo, em vez de "sofredor" é, "redentor". E que a redenção deve chegar através do horror da percepção de que fomos todos nós - ainda hoje - que matámos. Morreu por nós, para nos salvar. E que fizemos nós com esse ensinamento?

Ele fez um filme. O outro, quando escreveu o Evangelho dele, foi censurado. O público emociona-se. Gostava de saber quantas vezes vai passar este filme em alturas da Páscoa. Acho que vou aproveitar para rever os clássicos este fim de semana. Pelo menos não se querem fazer passar por parábolas dentro das parábolas.

Eu, por mim, prefiro os originais.

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