segunda-feira, fevereiro 02, 2004

Novas leituras

A propósito do prémio Almada a Jorge Silva Melo, e na sequência do post anterior "Como um rasgão na paisagem", leio hoje o que não li no sábado. Vasco Pulido Valente dixit:

O encenador e actor Jorge Silva Melo recusou um prémio de 25 mil euros, que lhe fora atribuído por um organismo do Ministério da Cultura. Disse ele: «Não gosto de prémios do Estado, porque acredito que o artista é por natureza um traidor ao poder instituído.» «O artista», acrescentou amavelmente, «desenvolve a sua actividade contra o Estado» e por isso só deve ser «reconhecido» pelos seus pares. Em resumo: qualquer distinção dada pelo sustentáculo de uma ordem injusta, por esse inimigo nato da liberdade criadora, não honra, compromete. O Ministério bem se tentou apropriar com blandícias do subversivo Silva Melo: mas desta vez não conseguiu. O homem serenamente não cedeu e a companhia (de teatro) que fundou e dirige vai continuar a brandir, face ao compromisso e à fraqueza, o seu altivo «lema»: «Sem Deus, nem chefe.» Este episódio mereceu, e com razão, o entusiasmo da Esquerda, que fotografou e ouviu reverentemente o herói, sem o mais leve comentário ou sequer uma pergunta a despropósito. Tanta independência inspira com certeza terror e tremor. Até aqui tudo bem. Excepto por um pequeno pormenor: Silva Melo e a sua companhia vivem do Estado, de que receberam, em 2003, 450 mil euros. Por outras palavras, o artista «trai» o poder instituído com a espórtula do poder instituído. Nesta operação a consciência delicada de Silva Melo não vê a menor dificuldade. Acha presumivelmente que está no seu direito e que «Sem Deus, nem chefe» não inclui o Ministério da Cultura ou o dinheiro do contribuinte. Por uma curiosa contorção moral o prémio é que o incomoda. Uma birra absurda? Claro que não. Porque o prémio revela duas coisas que ele gostava de esconder. Primeiro, que o Estado o considera um artista oficial. E, segundo, como corolário, que toma as pretensões «revolucionárias» do teatro dele pelo que na verdade são, ou seja, uma parlapatice inócua. Sem hipocrisia, o subsídio ofende.


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