O lugar do morto
Análise à proposta de devised theatre Execução Pública, encenação de Pedro Gil
Caves do Liceu Passos Manuel, Lisboa
16 a 25 Fevereiro 2005
Podemos considerar que determinadas propostas que se apresentam durante o processo de criação não devem ser analisadas, sob prejuízo de serem criadas expectativas que se confundem com espectáculos já finalizados (se acreditarmos que os espectáculos são finalizados no momento em que estreiam). Execução Pública não é um espectáculo, mas antes uma proposta de trabalho que se quer desenvolvida e aprofundada. Concebe uma construção apoiada no conceito de devised theatre, o que a liberta de algumas metas que se exigem aos espectáculos já 'fechados'. Mas porque o objectivo do devised theatre é pensar os objectos, considera-se relevante um discurso que pense a proposta de Pedro Gil.
Este conceito de devised theatre começa a ganhar algum peso em Portugal, nomeadamente junto de criadores que recusando a ideia de construção colectiva, se permitem a trabalhar uma proposta a partir dos fundamentos clássicos (encenador, dramaturgia, subtexto, interpretação, outras disciplinas), deles retirando somente os aspectos positivos. Ou seja, aqueles que lhes permita fazer evoluir para um esboço de espectáculo que mais do que afirmar, questiona.
Execução Pública - uma proposta que reclama a aprendizagem que Pedro Gil, o encenador, fez com o grupo inglês Third Angel no âmbito de um curso de encenação e devising na Gulbenkian, entre Julho e Setembro 2004 [ver Sinais de Cena, nº2, pp.69-71] - propõe-se discutir/interrogar o tema da condenação à pena de morte através de um dispositivo nada simples e que, inevitavelmente, se vira contra si: o cruzamento de discursos que problematizem a questão e façam foco na história que os interliga. Portanto, Execução Pública quer-se como estrutura bilateral.
Os níveis de discurso apresentados começam de dentro para fora, ou se quisermos do universal para o particular e depois, no sentido inverso. É o inevitável caminho de temas maiores que as propostas e demasiado expostos à inerente fragmentação. A utilização de temas disruptores através de dispositivos teatrais não só devolvem ao teatro o seu lugar de questionador das 'razões do mundo', mas também implicam todas as expressões (artísticas, sociais, políticas, culturais, morais...) num pensamento globalizante. Execução Pública parece querer procurar dar um contributo a esta questão, sem no entanto se compreender a razão, para lá da necessária e sempre útil discussão abstracta.
Contudo, este cruzamento de níveis de discurso não permite uma clarificação dos objectivos da proposta. Se já seria de esperar que tal acontecesse com um tema tão superior como é o da pena de morte, mais difícil se torna quando a opção passa por colocar a proposta num contexto que facilmente (e por defeito) identificamos como Portugal. Mesmo que o espectáculo comece com uma recusa daquilo que poderia ser lido - Horácio Manuel vai definindo vários exemplos de condenações à pena de morte, numa tentativa de libertar o espectáculo de comparações e evocações -, não temos capacidade real de estabelecer qualquer aproximação, a não ser pela individual indignação. Uma vez que em Portugal essa prática não existe, a tentativa de Pedro Gil torna-se frágil, pouco definida e, sobretudo, ingénua. O que não quer dizer que não se devam discutir os temas, mas antes perceber de onde partem. E para uma proposta que se expõe numa fase evolutiva, seria mais estimulante percebermos de onde partiram e que posição têm sobre isso e não tanto um fechar de portas em busca de um 'mundo menos doloroso'.
Execução Pública parece querer fazer passar a ideia de que a realidade pode ser evitada e, sobretudo, modificada. Ou seja, que em tudo há uma outra solução e para todos uma 'salvação'. Esta proposta quase que assume uma certa veia religiosa, no sentido em que força o Homem a ver os seus limites e os seus julgamentos. O que mais do interessante e estimulante é perigoso e falacioso. E como tratamos de um tema fracturante, no momento em que o condenado (Pedro Gil) afirma que todos merecem uma segunda oportunidade e não um julgamento imediato, depressa nos lembramos que se Hitler tivesse sido aceite na Escola de Belas Artes de Viena talvez não tivesse sido o que foi. Será assim tão fácil? Execução Pública parece acreditar que sim.
E acredita que sim porque transforma a história do condenado numa evocação dos tempos de infância e adolescência com o amigo/advogado (Romeu Costa) onde se procura dar conta das fragilidades a que esse condenado esteve exposto. Portanto, mais do que tudo, o condenado foi a primeira vítima. Do sistema escolar (que parece justificar a utilização das caves do Liceu Passos Manuel como espaço de representação), da ausência de suporte familiar, da ostracização a que o próprio sistema judicial remete os condenados. Ora, para esta temática, argumentos tão simples revelam uma incapacidade de controlar todas as dimensões da proposta, remetendo-a a um repetir de chavões e lugares comuns.
Isso aliado a um excesso de banda sonora, fazem de Execução Pública uma proposta barroca e quase na fronteira da anulação do que se espera de uma proposta de devised theatre: um espaço em branco, preparado para receber.
Ainda que possamos encontrar em Execução Pública essa vontade de questionamento anteriormente mencionado, não chega a ser suficiente para aguentar uma proposta que se estende no tempo sem necessariamente apresentar um climax ou uma conclusão. No momento em que o condenado é colocado na cadeira electrica, só lamentamos que não o tenha sido mais cedo e o facto de ele empurrar o amigo para a cadeira só nos faz não ter qualquer tipo de simpatia pela figura que tentou provar ser.
Volto a afirmar que o conceito de devised theatre prevê a indefinição e a obra em aberto. Mas certamente só avança com fundamentos muito sólidos e um ponto de vista que, mesmo redundante, se permite questionado. Em Execução Pública somos expostos a uma proposta que não se assume finalizada mas se comporta como tal. E isso não só a fragiliza como anula qualquer vontade de regressar à proposta.
Resta assinalar o trabalho de concepção plástica de Pedro Silva que, num esforço de não imposição sobre um tema difícil e facilmente propenso à demagogia, se apresenta simples e essencial, antes sugerindo e não definido. O chão de linóleo branco, a cortina que separa o público do espaço e os adereços parecem cumprir a função essencial do devised theatre: acolher "a sorte, o acidente, o acaso, o inesperado ou o imprevisível" (Alexandre Kelly in Sinais de Cena: idem)
Análise à proposta de devised theatre Execução Pública, encenação de Pedro Gil
Caves do Liceu Passos Manuel, Lisboa
16 a 25 Fevereiro 2005
Podemos considerar que determinadas propostas que se apresentam durante o processo de criação não devem ser analisadas, sob prejuízo de serem criadas expectativas que se confundem com espectáculos já finalizados (se acreditarmos que os espectáculos são finalizados no momento em que estreiam). Execução Pública não é um espectáculo, mas antes uma proposta de trabalho que se quer desenvolvida e aprofundada. Concebe uma construção apoiada no conceito de devised theatre, o que a liberta de algumas metas que se exigem aos espectáculos já 'fechados'. Mas porque o objectivo do devised theatre é pensar os objectos, considera-se relevante um discurso que pense a proposta de Pedro Gil.
Este conceito de devised theatre começa a ganhar algum peso em Portugal, nomeadamente junto de criadores que recusando a ideia de construção colectiva, se permitem a trabalhar uma proposta a partir dos fundamentos clássicos (encenador, dramaturgia, subtexto, interpretação, outras disciplinas), deles retirando somente os aspectos positivos. Ou seja, aqueles que lhes permita fazer evoluir para um esboço de espectáculo que mais do que afirmar, questiona.
Execução Pública - uma proposta que reclama a aprendizagem que Pedro Gil, o encenador, fez com o grupo inglês Third Angel no âmbito de um curso de encenação e devising na Gulbenkian, entre Julho e Setembro 2004 [ver Sinais de Cena, nº2, pp.69-71] - propõe-se discutir/interrogar o tema da condenação à pena de morte através de um dispositivo nada simples e que, inevitavelmente, se vira contra si: o cruzamento de discursos que problematizem a questão e façam foco na história que os interliga. Portanto, Execução Pública quer-se como estrutura bilateral.
Os níveis de discurso apresentados começam de dentro para fora, ou se quisermos do universal para o particular e depois, no sentido inverso. É o inevitável caminho de temas maiores que as propostas e demasiado expostos à inerente fragmentação. A utilização de temas disruptores através de dispositivos teatrais não só devolvem ao teatro o seu lugar de questionador das 'razões do mundo', mas também implicam todas as expressões (artísticas, sociais, políticas, culturais, morais...) num pensamento globalizante. Execução Pública parece querer procurar dar um contributo a esta questão, sem no entanto se compreender a razão, para lá da necessária e sempre útil discussão abstracta.
Contudo, este cruzamento de níveis de discurso não permite uma clarificação dos objectivos da proposta. Se já seria de esperar que tal acontecesse com um tema tão superior como é o da pena de morte, mais difícil se torna quando a opção passa por colocar a proposta num contexto que facilmente (e por defeito) identificamos como Portugal. Mesmo que o espectáculo comece com uma recusa daquilo que poderia ser lido - Horácio Manuel vai definindo vários exemplos de condenações à pena de morte, numa tentativa de libertar o espectáculo de comparações e evocações -, não temos capacidade real de estabelecer qualquer aproximação, a não ser pela individual indignação. Uma vez que em Portugal essa prática não existe, a tentativa de Pedro Gil torna-se frágil, pouco definida e, sobretudo, ingénua. O que não quer dizer que não se devam discutir os temas, mas antes perceber de onde partem. E para uma proposta que se expõe numa fase evolutiva, seria mais estimulante percebermos de onde partiram e que posição têm sobre isso e não tanto um fechar de portas em busca de um 'mundo menos doloroso'.
Execução Pública parece querer fazer passar a ideia de que a realidade pode ser evitada e, sobretudo, modificada. Ou seja, que em tudo há uma outra solução e para todos uma 'salvação'. Esta proposta quase que assume uma certa veia religiosa, no sentido em que força o Homem a ver os seus limites e os seus julgamentos. O que mais do interessante e estimulante é perigoso e falacioso. E como tratamos de um tema fracturante, no momento em que o condenado (Pedro Gil) afirma que todos merecem uma segunda oportunidade e não um julgamento imediato, depressa nos lembramos que se Hitler tivesse sido aceite na Escola de Belas Artes de Viena talvez não tivesse sido o que foi. Será assim tão fácil? Execução Pública parece acreditar que sim.
E acredita que sim porque transforma a história do condenado numa evocação dos tempos de infância e adolescência com o amigo/advogado (Romeu Costa) onde se procura dar conta das fragilidades a que esse condenado esteve exposto. Portanto, mais do que tudo, o condenado foi a primeira vítima. Do sistema escolar (que parece justificar a utilização das caves do Liceu Passos Manuel como espaço de representação), da ausência de suporte familiar, da ostracização a que o próprio sistema judicial remete os condenados. Ora, para esta temática, argumentos tão simples revelam uma incapacidade de controlar todas as dimensões da proposta, remetendo-a a um repetir de chavões e lugares comuns.
Isso aliado a um excesso de banda sonora, fazem de Execução Pública uma proposta barroca e quase na fronteira da anulação do que se espera de uma proposta de devised theatre: um espaço em branco, preparado para receber.
Ainda que possamos encontrar em Execução Pública essa vontade de questionamento anteriormente mencionado, não chega a ser suficiente para aguentar uma proposta que se estende no tempo sem necessariamente apresentar um climax ou uma conclusão. No momento em que o condenado é colocado na cadeira electrica, só lamentamos que não o tenha sido mais cedo e o facto de ele empurrar o amigo para a cadeira só nos faz não ter qualquer tipo de simpatia pela figura que tentou provar ser.
Volto a afirmar que o conceito de devised theatre prevê a indefinição e a obra em aberto. Mas certamente só avança com fundamentos muito sólidos e um ponto de vista que, mesmo redundante, se permite questionado. Em Execução Pública somos expostos a uma proposta que não se assume finalizada mas se comporta como tal. E isso não só a fragiliza como anula qualquer vontade de regressar à proposta.
Resta assinalar o trabalho de concepção plástica de Pedro Silva que, num esforço de não imposição sobre um tema difícil e facilmente propenso à demagogia, se apresenta simples e essencial, antes sugerindo e não definido. O chão de linóleo branco, a cortina que separa o público do espaço e os adereços parecem cumprir a função essencial do devised theatre: acolher "a sorte, o acidente, o acaso, o inesperado ou o imprevisível" (Alexandre Kelly in Sinais de Cena: idem)
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