quarta-feira, dezembro 01, 2004

Bicho-homem

Análise ao espectáculo Antes dos lagartos
Direcção Artística Ricardo Cruz
Karnart
6ª Mostra de teatro jovem de Lisboa
Teatro Taborda
26 Novembro 2004



Antes dos lagartos é uma peça profundamente solitária, naquilo que a busca de um ideal encerra de solidão. A história inconformada de Trama e Bicho Nú sugere um universo quase paralelo em que os homens ou são animais ou o desejam ser, numa representação pré-apocalíptica que não só pela forma como foi encenada, apresenta alguns apontamentos de Williams Burroughs e o seu «Festim Nú» ou, num sentido mais radical, reporta aos replicantes de «Blade Runner».

O jogo cénico desenvolve-se a partir de uma relação de forças entre as duas personagens que tanto se assemelha a uma brincadeira de crianças (estamos sempre à espera de ver a luz acender e ouvir a voz de um adulto), quanto a um conflicto entre dois homens adultos presos a uma pulsão sexual e masoquista da qual parecem não se querer libertar. Essa pulsão sexual, aliás, é apresentada sob a forma de gestos largos e quase histriónicos que rapidamente solicitam a vontade de uma explosão. Trata-se, provavelmente, de ocupar o espaço vazio da racionalidade, característica a que os lagartos são alheios.

A aposta no cariz sexual, simbolizada pelos corpos semi-nús dos actores - ainda que se compreenda dentro de uma estética Karnart onde a exposição do corpo masculino sempre foi um elemento dramatúrgico, quando não é só de decoração -, acaba por funcionar somente a um nível superficial. Sobretudo na desnecessária simulação de uma ida à casa de banho. Não se crê que a nudez queira fazer as vezes de pele de lagarto já que ao longo do espectáculo os actores vão vestindo e despindo adereços que permitem a máscara.

Trata-se, contudo, de um teatro de faz-de-conta, de máscaras e ilusões. Um exercício algo simples de teatro-no-teatro que não procura expandir-se para além dos elementos constantes no texto. Sente-se, aliás, uma vontade de colar um registo expressionista (diria mesmo bonecreiro) a um texto de profundas metáforas que, de vez em quando, parece evocar José Saramago e o seu «Ensaio sobre a Cegueira».

Antes dos lagartos é, assim, uma proposta metafórica sobre a incapacidade de satisfação humana e o descontrolo provocado pela ilusão. A crença faz maravilhas e este é também um espectáculo de fé. Mais não seja porque força as personagens a um conflicto de interesses e valores. O espectáculo desenvolve-se num tom de fábula, permitindo considerar que a lenga-lenga que os actores/lagartos-to be usam com as crianças nos seus espectáculos não é mais do que uma autobiografia que um dia esperam vir a ser a sua. Por enquanto não passam de lobos com dentes de leite.

Há qualquer coisa de sufocante no texto de Pedro Eiras que coloca o espectador num patamar não muito diferente daquele em que se inscrevem as personagens. E isso é a facilidade com que podemos olhar para os dois homens-lagartos como um só. No fundo eles não são mais que uma mesma entidade dividida naquilo que acha certo e errado. Nenhum dos dois parece muitos disposto a querer ver a verdade: jamais serão lagartos porque «a natureza deu a uns espinhos e a outros deixou-os nús». Mas querem muito. E isso emociona.

Contudo, a encenação parece querer contrariar essa visão, muito mais metafórica e estimulante que um convencional crente e descrente (ou fraco e forte, se quisermos). Ao apostar numa expressividade exagerada, acaba por anular também a possibilidade de considerarmos Antes dos lagartos como uma farsa burlesca ou um espectáculo num registo que convocasse a commedia del' arte. Reduz, assim, o espectáculo a uma convencional urgência.

Os dois actores, ainda que revelem uma energia contagiante são vítimas dela, já que é difícil perceber até onde poderiam ir as intenções dramatúrgicas do autor em virtude desses registos demasiado uniformes. Na certa, estes lagartos nunca serão camaleões. Mas também não são lagartixas. Serão uma espécie estranha que se for vista num jardim somos capazes de a deixar seguir só pela forma como procura sobreviver. Obriga-os a definirem o que é de sua responsabilidade e o que é da responsabilidade dos deuses Livra (o bem) e I Gnú (o mal), num constante adiar de uma resolução dos seus problemas. O que isto encerra da luta entre o poder e a vontade é ao mesmo tempo uma alusão ao verdadeiro medo e inimigo: Trama e Bicho Nú são os verdadeiros e principais inimigos um do outro. E de si mesmos.

E a encenação parece aproveitar-se disso para, numa aposta feliz, encravar as personagens numa aparente cave. Aproveitando a arquitectura teatral do palco do Teatro Taborda, e alicerçando-se num jogo de luz sugestivo, aposta também nessa necessidade de mostrar as duas personagens como subjugadas por forças maiores. Até encravadas entre dois deuses.

Antes dos lagartos apresenta-se assim como uma proposta ultra-metafórica, porém, incapaz de se ultrapassar. E aquilo que poderia ser uma envolvente viagem pelos meandros da indefinição e da sobrevivência (no que isso encerra de ingenuidade que permite os homens avançar) deixa um sabor amargo de visita ao jardim zoológico. Os animais, por muito perto que pareçam estar de nós, nunca deixam de ser animais. E Trama e Bicho Nú queriam só ser uma coisa. Não duas.

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