terça-feira, julho 10, 2007

Crítica de dança: Blessed, de Meg Stuart

A relação pode não ser evidente, porque Meg Stuart não gosta de trabalhar sobre metáforas, mas ajuda à leitura de Blessed se se souber que a coreógrafa nasceu em Nova Orleães, no Sul dos Estados Unidos, a mesma cidade devastada pelo furacão Katrina no verão de 2005. É daí que vem a constante chuva que devassa a fragilidade dos papelões em forma de abrigo, palmeira e cisne desenhados por Doris Dziersk, que estabelecem diálogos frágeis e poéticos, de um simbolismo desarmante, com uma utopia quase religiosa.

É também daí, dos escombros húmidos e dos restos de uma cidade que revelou o outro lado do sonho americano, que vem a força da resistência daqueles seres, impressa na visceral busca dos pertences por Francisco Camacho, mas também no tosco samba de Kotomi Nishiwaki. Corpos errantes que remetem para a natural capacidade humana de cicatrização, contra todas as expectativas e até mesmo a moral e ética.

Ajuda ainda saber que esta peça, minimal não pela simplicidade dos movimentos mas pelo modo como se vai impondo, de surpresa, surge da relação fraterna que Meg Stuart mantém com Francisco Camacho desde os tempos de Disfigure Study, de 1991, peça-fundadora de um discurso de pesquisa sobre o movimento numa sociedade hiper-mediatizada e eminentemente trágica. É que se sente, física e emocionalmente, nos traços de Camacho uma cumplicidade, uma memória, um reconhecimento da linguagem que partilham.

Não é por acaso que a peça manteve, durante muito tempo, o provisório título de Um Solo para Francisco. É que esta carta dela para ele – esse corpo estranho, tão pouco bailarino e tão humanamente cru – é um regresso a um discurso iniciático, de aspiração a um primitivismo e a uma sensorialidade que as mais recentes peças dela, sobretudo as de grupo, tinham levado já para o domínio da irrisão, da frieza descrente, cínica e desesperançada.

Blessed retoma questões exploradas, por exemplo em Alibi, de 2001, marcada inevitavelmente pela tragédia do 11 de Setembro. Também aqui é um corpo em confronto com a sobrevivência ao desastre que resiste e se renova. E não deixa de ser curioso que se possa sugerir que “as peças americanas” de Meg Stuart são aquelas que mais de perto tocam em uma das linhas maiores do seu trabalho: como lidar connosco e em relação ao que movemos?

A peça, austera pelo rigor matemático com que Camacho desenha precisas linhas no espaço cinzento, vai acumulando tensões, seja pela extraordinária banda-sonora de Hahn Rowe, seja pela impossibilidade de imaginar o que mais sucederá. Há uma impassividade no seu rosto, uma constânciamusical, uma ocupação de espaço pela chuva permanente que tornam a peça dramaturgicamente comovente. Mesmo que possamos achar que há uma extensão no tempo que pode fazer perigar as frágeis sequências – e a mudança de figurinos final, auxiliado por Abraham Hurtado, surge aqui como um elemento adicional pouco consistente pois duplica e caricaturiza a tragédia –, há em Blessed um trabalho de profundo rigor e implicação com o mundo negro em que vivemos.



Blessed apresenta-se hoje, às 21h, no Centro Cultural de Belém.



Texto publicado no jornal PÚBLICO a 5 de Julho.
Fotografia de Chris van der Burght


Hoje, às 18h30, na Culturgest, decorre uma conversa sobre a obra de Meg Stuart com as presenças de Gil Mendo, programador de dança da Culturgest, Mark Deputter, director do Festival Alkantara, Myriam van Imerschoot, dramaturgista, e Meg Stuart.

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