sábado, dezembro 23, 2006

Crítica de teatro: A Casa da Lenha



Casa vazia

A Casa da Lenha
De António Torrado
Encenação de João Mota
Teatro Nacional D. Maria II
12 Dezembro 2006, 21h30
Sala a metade
em cena até 30 Dezembro


Quando os exemplos acusam uma imensa fragilidade, a distância que vai de um docu-drama a uma peça didáctica é igual à velocidade de um fósforo a arder. «A Casa da Lenha», o levantamento biográfico que António Torrado assinou sobre Fernando Lopes-Graça, e que até ao fim do ano se apresenta no TNDMII no âmbito dos cem anos do nascimento do compositor, é disso prova. Percorrendo no espaço de duas horas os oitenta e oito anos da vida de um homem que fez da ética individual uma bandeira e da resistência o motor de criação, a peça de Torrado peca pelo excesso de honestidade com quer mostrar ter sido feita, acusando ainda o peso da responsabilidade da revisitação histórica.

Emprega-se uma doutrina com tiques de gosto oficial, muito justificado por esta obsessão da direcção do TNDMII em fazer exorcismo histórico disfarçado de grande aposta dramatúrgica. A peça parece preferir esquecer que se devem accionar mecanismos de deslocação da realidade para a ficção, desejando que esses confrontem a realidade, já que o facto de ser uma peça – logo, um objecto ficcionado-, deve comportar determinadas liberdades que procurem contrariar uma visão única, sem direito a contraditório, questionamento ou reflexão.

Se a referência ao filme «Morangos Silvestres», de Ingmar Bergman, onde um velho professor recorda factos da sua vida numa viagem de carro, é reconhecida pelo autor na entrevista que integra o programa, aqui, os breves quadros que a compõem não permitem perceber de que modo Lopes-Graça se viu inserido nos contextos políticos, sociais e culturais. Não é que eles não sejam enunciados, sobretudo na evocação directa de nomes e referências, mas porque o texto não oferece à personagem principal – e menos ainda às outras, e são cinquenta e quatro -, a profundidade, a margem e o espaço necessários para se desenvolverem, se organizarem e fazerem opções.

«A Casa da Lenha» é, assim, uma morosa e anti-climáxica narração de factos, sem que a partir deles sejam claras as complexas e apaixonantes relações estabelecidas pelo retratado. Há um nivelamento grosseiro, caracterizando Lopes-Graça como ser impoluto (que não se duvida ter sido), quase semi-deus, ideia que muito provavelmente repugnaria ao próprio. Parece não haver vontade em fazer escolhas, antes preferindo-se contar tudo em pouco tempo. Sucedem-se os factos, cruzam-se as histórias, narram-se eventos, ilustram-se, a espaços, ideias com excertos de composições de Lopes-Graça, convocam-se nomes e tempos para compor uma ideia de mundanidade, mas nada do que se dá a ver em palco permite conhecer melhor uma das mais ricas figuras do século XX português. Por isso, o extraordinário trabalho de Carlos Paulo, escolhido acertadamente (e não só pela assombrosa semelhança física) para protagonista, vê-se a braços com uma incapacidade de se sustentar para lá da técnica de resistência que só a prática, o seu enorme talento e a cumplicidade evidente com o encenador, João Mota, lhe ensinaram.

Na verdade, o próprio trabalho de Mota é condicionado por esta imensa montra referencial. Mais do que encenar um espectáculo vê-se perante uma difícil operação de eficácia cénica, entre entradas e saídas de personagens, inícios e fins de cenas brevíssimas, diferentes mensagens de cada frase, de cada espaço temporal, de cada contexto onde se inserem. Porque o texto não o permite, pela sua vagarosidade e ausência de “picos” que orientem a narrativa, o espectáculo corre dormente e cinzento (da cor dos figurinos, de Carlos Paulo) pela vida de Lopes-Graça, terminando apoteoticamente com o «Requiem pelas vítimas do fascismo», que compôs em 1979, misturado com o «Grândola Vila Morena». Nessa altura, a imensa casa da lenha que dá título ao espectáculo e enche o palco com as suas reentrâncias, cavidades e diversos andares (cenário de José Manuel Castanheira), mergulha no “poço” do palco do Teatro Nacional, transformando-se na metáfora sobre o fim da longa noite negra do fascismo. Carlos Paulo atravessa o palco, como um cavaleiro solitário, em direcção ao ciclorama de intensa luz vermelha, abrindo os braços, como que preparado para receber o futuro. Mas a peça acaba e fica-nos o amargo travo do desconhecido.

Há em «A Casa da Lenha» uma vontade clara de não implicação e isenção que, no limite, são contrárias ao modo de actuar de Lopes-Graça que pactuava pouco com ambiguidades e menos ainda procurava um lugar no panteão nacional. Se o conseguiu não foi por evitar polémicas, nem por se manter distante e, muito menos, cedendo a doutrinas, fossem elas quais fossem. Tudo opções que se impõem numa peça que parece esquecer o modo inventivo e rebuscado (no bom sentido da palavra) com que António Torrado já provou ser um dramaturgo a ter em conta, que João Mota trata as relações humanas com uma minúcia e uma seriedade, por vezes essas sim, bergmanianas, e a versatilidade, rigor e dedicação de Carlos Paulo.

Fica, no fim, uma lição de história bidimensional, como se se tratasse de um documentário televisivo feito de imagens de arquivo montadas sem grande olhar analítico, e uma oportunidade perdida para, mais do que homenagear, se pensar o lugar do homem (Lopes-Graça claro, mas sobretudo os valores que ele representava) num século tumultuoso e musculado.


Fotografia de Margarida Dias

7 comentários:

Anónimo disse...

Grande amigo , umas boas festas é o que eu te desejo. Que te corra tudo bem, junto daqueles que mais gostas.

Grande abraço
cachucho

Anónimo disse...

Lopes-Graça frequentava a casa do meu tio na Parede. Beijos,festas felizes para 2007.Miguel

Anónimo disse...

"Pensar o lugar do homem (Lopes-Graça claro, mas sobretudo os valores que ele representava) num século tumultuoso e musculado"???

Século musculado?

Você um dia tem que nos contar essas suas fantasias!!!!

Anónimo disse...

É só o melhor espectáculo que vi na minha vida.

Anónimo disse...

Adorei a homenagem.
Coisa rara em Portugal. Invejas!!
Adorei o didactismo.
Coisa rara em Portugal. Muitos génios?!!
Adorei os actores. Adorei o Arpad e a Vieira da Silva.
Adorei o Carlos Paulo.
O João Mota é muito bom.
Esta apreciação partilho com muitos amigos meus.
Parabéns Fragateiro.
TAmbem conheci o Lopes-Graça.

Anónimo disse...

Acredito em Teatro de Valores! Gostei da Peça

Anónimo disse...

É um disparate não perceber a importância deste espectáculo. Pode-se não dizer nada, ou simplesmente não gostar da proposta (mera questão de gosto) mas, dizer que não presta... é pura ignorância ou ingenuidade.
Há muito que não via o Petronilho a representar. Gostei. Lembro-me de o ver, tambem no T.Nacional numa peça infantil escrita pelo Carlos Pinhão, senão me engano chamava-se Bom dia Palhaço. Há muitos anos... com o grupo de Campolide.
Até breve.