segunda-feira, dezembro 11, 2006

Crítica de dança: Deborah Hay em Serralves


Quando a parte não faz o todo

Solos
Coreografia de Deborah Hay
Adaptação e interpretação de Jennifer Lacey, Sylvain Prunenec e Emmanuelle Huynh
Auditório de Serralves, Porto
09 Dezembro 2006, 22h00
Lotação Esgotada

A história pode ser contada de duas formas, uma longa e uma curta. É o caso de «Solos», apresentado no passado sábado no Auditório de Serralves, Porto, espectáculo satélite e derivado de um outro «O,O», de Deborah Hay, mostrado em Paris no âmbito do 35º Festival d’Automne, no passado mês de Novembro em versão francesa, que por sua vez parte de um terceiro, «Room», criado nos anos 90. A curta diria que «Solos» é uma experiência performática assente no diálogo inter-geracional e referencial entre um grupo de coreógrafos-intérpretes, mas sobretudo de uma em particular, Emmanuelle Huynh, e um mito da história recente da dança norte-americana Deborah Hay. Esta, através de um processo de transmissão exclusivamente oral, passou aos outros seis envolvidos - Nuno Bizarro, Corinne Garcia, Emmanuelle Huynh, Jennifer Lacey, Catherine Legrand, Laurent Pichaud e Sylvain Prunenec -, esse solo intitulado «Room». Cada um deles deveria “estar atento à experiência que ele está a viver, à sua prática (uma espécie de récita do movimento – que o discurso seja formulado ou permaneça interior)”. Depois, a coreógrafa ausentou-se e eles trabalharam a partir dessa transmissão durante três meses, seguindo ordens concretas e específicas, inscritas aliás num contrato. O resultado final, que juntava todos os solos aos quais Hay deu lógica e sequência, colocaria “em segundo plano a questão do que eles fazem, prevalecendo a questão de como o fazem e de como isso os faz viver”.

O crítico francês Gerard Mayen* escreveu que «O,O» não deixa “dúvidas de que a qualidade singular do investimento é surpreendente, consistindo em tornar mais densas as presenças, mas a um nível de consciência dominada que elas mesmas induzem a uma distância considerável. A tensão trabalhada desta forma gera uma energia ultra-contemporânea”. E é noção de ultra-contemporaneidade que nos força a pensar em «Solos» não como um exercício performático finito mas, pelo contrário, amplo na sua concepção, estruturação e reflexão. Daí decorrendo que na versão longa teríamos que falar da filiação que Huynh assume reclamar de Hay e no movimento nova-yorquino da Judson Dance Theater – fundador de uma nova relação com a dança enquanto disciplina, prática e acção - e na evidente e fundamental recuperação pela qual os membros desse movimento, entretanto extinto, está a passar, nomeadamente na Europa, através de novos convites para criações, diálogos entre criadores e reposições de espectáculos. Mas sobretudo falar do discurso social, político e cultural (ou seja, não exclusivamente centrado na dança) que coreógrafos, e Emmanuelle Huynh à frente do Centro Coreográfico de Anger, é só um exemplo, estão a trazer à dança em França, depois da explosão artística dos anos 80, do estabelecimento dos centros coreográficos, do aparecimento de novas gerações que rasgam fronteiras artísticas, estéticas e críticas, e ainda da crise dos intermitentes que se arrasta há anos, bem como dos acessos debates sobre o futuro da criação contemporânea que tiveram no Festival de Avignon 2005 um dos pontos mais altos. Portanto, teríamos que pensar este espectáculo enquanto ponta de um iceberg cultural nada pacífico ou evidente.

Para isso mesmo aponta a crítica já citada de Mayen, onde este diz que “se existem personagens ou mesmo papéis, eles operam sem nomeação, imperturbavelmente distanciados dos seus intérpretes, que de qualquer maneira correm na retaguarda, deixando-se agarrar momentaneamente, para depois se constatar que o desfecho é dissimulado, antes de uma outra sobrevivência, vã, imprevista, lunática”. Desse modo, somos obrigados a ver «Solos» como uma ínfima parte de um longo processo histórico-coreográfico. Se quisermos ser realistas, «Solos» não existe por si mesmo mas como derivado facilmente substituível de «O,O», ficando aquém, enquanto objecto isolado, da grandeza e da importância da experiência daquele.

Os três breves solos vistos em Serralves, mesmo se apresentados num único programa e sequencialmente, não formam uma unidade, nem formal nem linguística. Sobretudo porque, isolados da ordem e organicidade do conjunto, as leituras que deles se podem fazer estão amputadas. Se é verdade que podemos tentar ler na aridez dos movimentos de Sylvain Prunenec, no imaginário fértil e glamoroso da Pocahontas pensada por Huynh ou na liberdade do corpo de Jennifer Lacey a lógica da obra de conjunto, não é menos verdade que vistos assim, a seco, ampliam aquilo a que Hay se referia como a identificação do feedback da sua prática. Disse ela, ao mesmo Mayen, durante o processo: “Em lugar de se focalizar sobre o modelo procurado por um autor, toda a atenção é colocada sobre a experiência perceptiva que o corpo tem de si mesmo na dança. Durante estes meses os intérpretes […] deixaram que esta dança os informasse. E isto deve ser uma experiência quotidiana, que nada tem a ver com a aprendizagem de uma sequência de dança”.

O que eles fazem, porque há naturalmente elementos comuns, é uma ocupação de espaço de forma circular, percorrendo-o com breves e minuciosos gestos sem grande leitura dramatúrgica. Ou, para sermos mais correctos, sem que seja evidente a natureza do gesto e a sua inscrição coreográfica. Às vezes usam palavras, outras vezes cantam. Há alturas em que abandonam o círculo marcado a tracejado para o percorrerem de modo aleatório. Há quem opte por um figurino mais marcado (Huyhn, com a colaboração de Christian Rizzo) e quem venha para a cena sem nada, apenas com um rosto impassível (Prunenec). E se alguns estão obcecados com uma ideia (o fogo, no caso de Lacey, vestida de escoteira), outros, como Prunenec, encerram-se no silêncio do gesto.

«Solos» é um exercício sobre a presença de um corpo em palco e de um corpo em confronto. Uma ideia que em «O,O» se reconhecia pela partilha comum de um espaço, onde, diz Mayen, “esta tenacidade comovente permanece obsessivamente privada da intriga, da justificação”, mas que em «Solos» se perde e distrai. É um espectáculo que, por causa de um exercício prático, se torna teórico. Há espectáculos assim, onde o processo é mais importante que o resultado final. Espectáculos onde o que se mostra não dá conta do peso, da responsabilidade, da importância e do crescimento pessoal dos envolvidos. Há espectáculos que se invejam precisamente porque os processos se adivinham tão fascinantes. E, inevitavelmente, esses espectáculos carregam uma expectativa contra a qual é impossível ir, combater e vencer.


Todas as citações foram retiradas do programa.

*Ler o ensaio «Non à Yvonne Rainer», de Gerard Mayen, publicado neste blog, acerca das influências do Judson Danse Theater na dança contemporânea francesa.

Agradecimentos: Mónica Guerreiro

1 comentário:

Anónimo disse...

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