domingo, dezembro 10, 2006

Anne Teresa de Keersmaeker no S. Luiz

crítica de dança

Combates de amor e sonhos

Mozart Concert Arias
Coreografia de Anne Teresa de Keersmaeker
Com a Orquestra Metropolitana de Lisboa
São Luiz Teatro Municipal
06 Dezembro 2006, 21h00
Sala a dois terços


Anna Kisselgoff, crítica do New York Times, ao falar de Elena’s Aria, de 1984 e a primeira peça em que Anne Teresa de Keersmaeker trabalhou com música clássica, no caso árias de ópera de Donizetti e Bizet, fazia notar que a coreógrafa via o papel da mulher na sociedade como “parte de um problema político mais abrangente”. Uma questão de posicionamento que em 1992, oito anos depois – e hoje, passados quinze da estreia –, se lê, de forma clara, em Mozart Concert Arias, peça onde a belga combina movimento contemporâneo, orquestra e canto nos recriados salões da alta burguesia. Se é antiga a relação de Keersmaeker com o classicismo, não é menos profunda a vontade de não querer deslocar a partitura para o corpo. Da mesma forma que não encerra a mulher no estereótipo da fragilidade.

Perguntando-se “que movimentos para que música”, ela responde desenhando-lhes um comportamento discreto e bastante menos exposto que o dos homens, onde os ténues jogos de galanteio e sedução visam o estabelecimento de uma posição de domínio. Os bailarinos são mais frágeis, mais rudes, porque necessariamente viris e primários. Podíamos ler aqui a dificuldade que Keersmaeker em tempos reconheceu na criação de coreografias para corpos masculinos porque, afirmava, não os conhecia. E, por isso, é sobretudo delas que trata este jogo. Em frases que remetem para referências pop ou ampliam um gesto clássico, homens e mulheres enfrentam-se. Elas, mais do que nunca, impondo-se à exuberância deles, em “contraponto transcendente, com o movimento masculino tendendo ao alto, como num salto de trampolim, o feminino ao baixo, ao arrastamento pelo chão”, para citar Augusto M. Seabra no texto do programa.

A este clima inebriante, ao qual não é alheio o facto de tudo se passar num jardim de fresca relva, junta-se uma dimensão de representação que desloca a coreógrafa para o domínio do jogo e da farsa. A orquestra, os bailarinos e as cantoras líricas organizam-se em nome de uma dança de conjunto, onde os movimentos curtos alternam com uns que se prolongam, inclusive ao corpo do outro. Os figurinos são incompletos – eles de pés nus e depois só de calças, elas de longas pernas expostas e sapatos de salto –, diluindo-se, tal como os corpos, de uns para os outros num jogo de género digno de Laclos. As entradas e saídas no fim das árias, o permanente diálogo de olhares com a orquestra e as cantoras (que se deixam levar, também elas seduzidas) e a dramaturgia que inverte a habitual lógica – começam em grupo para acabarem em pares ou sozinhos –, são exemplos de um discurso sobre a representação. Do amor e da sedução, mas também do ritual e da tradição. Do total das presenças em cena nasce uma leitura da obra de Mozart sensual, inspirada e sedutora. E é por isso que esta viagem anacrónica no tempo resiste à história e ao efémero.



[texto publicado ontem no jornal Público]

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