quarta-feira, novembro 01, 2006

O olhar crítico: Erika Fisher-Lichte



Na primeira conversa sobre as relações entre a teoria e a prática, que O Melhor Anjo publicará uma vez por mês ao longo de um ano, a teórica e ensaísta alemã Erika Fisher-Lichte observa o modo como se constroem equívocos em torno do lugar do autor e do texto no teatro contemporâneo. Radicalizando muitas das suas posições, a autora de Semiothics of Theatre reflecte sobre a importância da falência das hierarquias, as fronteiras éticas e individuais e as possibilidades de intervenção artística num contexto político-social que receia o confronto religioso.


"Aquilo que o teatro nos proporciona, ou deve proporcionar, são experiências que, de certa forma, levem o espectador a reflectir sobre a própria experiência de ir ao teatro." - Erika Fisher-Lichte


Começo por uma citação sua, onde afirma que as performances não transmitem significados prévios, «rather, it is the performance which brings forth the meanings that come into being during its course» (A cultura como performance: Desenvolver um conceito, cf. versão portuguesa in Sinais de Cena nº4, Dezembro 2005) Mas o uso de textos antigos é, normalmente, feito enquanto metáfora para compreender o que se passa hoje?

O teatro não é um museu. É uma forma de arte absolutamente relacionada com o presente. Se quisermos ler o texto tal como foi escrito, temos que usar o original, na língua original… qualquer tradução já é outra coisa. Mas se vamos ao teatro, não é o texto que nos é transmitido, mas antes o texto é um dos materiais, como o espaço ou o corpo dos actores, através do qual se cria um espectáculo. E nós usamos todos estes materiais de tal forma que, o espectáculo no seu todo, pode responder a circunstâncias, condições e problemas específicos do presente. Há vários textos, como é o caso das tragédias gregas ou, de um lado oposto, Ibsen ou Tchecov, que pelo modo como foram feitos, se permitem a ser usados em diferentes culturas e circunstâncias. A meu ver é essa a importância destes textos. Não lhes podemos atribuir um significado fixo. Somos nós que temos que descobrir o que fazer com cada texto hoje. Portanto o importante não é o que está lá escrito, mas o que somos capazes de fazer com esse material. Cada tempo e cada cultura tentam sucessivamente que os espectáculos assumam o que Eurípides nos disse, ou o que Ibsen nos disse. [risos] Mas eles escreveram uma peça. Ponto. Podemos usar este material com diversos fins, porque o modo como vai ser dito, a organização do cenário, etc., vão dar um significado completamente novo a isso.

Nesse sentido, a ideia de respeito pelo texto é errada, e a luta entre novos criadores e outros já consagrados, para descobrirem quem é mais fiel ao texto, os desconstructores ou os puristas não existe.

Isso é um problema completamente absurdo. Ninguém pode ser fiel ao texto. Mesmo que se utilizem todas as palavras que foram escritas, nada nos pode garantir que os significados que saem dessa peça são sequer similares aquelas que o autor tinha em mente quando as escreveu. Nunca teremos a certeza do que ele pensava. Ele produziu um texto que existe, que é feito de palavras e essas mudam de significado de acordo com o contexto em que são produzidas. Essa transformação existe logo a partir do momento da tradução, uma vez que grande parte do processo de tradução não corresponde ao sentido em que os textos foram produzidos. Por isso, o exemplo das tragédias gregas é curioso uma vez que não são representadas na sua língua original, mas a partir de versões em grego moderno. Não podemos pegar num texto, qualquer que seja, só pelo que representa, porque ele existe para ser transformado uma e outra vez.

Quer isso dizer que os textos não têm identidade?

A questão é mais profunda: qual é a identidade de um texto? Como é que nos afecta? Será um artefacto que, por si só é algo morto, sem vida? Só o processo de leitura o traz de volta à vida. Mas não à vida que tinha no tempo em que foi escrito, porque nós que o lemos estamos no presente, somos o presente. E por isso, lemo-lo à nossa maneira. O que algumas pessoas chamam a identidade de um texto, ou falam da necessidade de se ser fiel ao texto, pode ser tudo politicamente correcto ou bem intencionado, mas é impossível, porque ninguém sabe qual é a verdadeira natureza de um texto. Um texto é feito de palavras que eu trago de volta à vida e que, só o facto de poder pronunciar de milhares de maneiras diferentes, fá-las querer dizer outra coisa. Ibsen, por exemplo, escreveu as suas peças antes da Noruega receber a independência da Dinamarca, razão pela qual os seus textos precisam ser adaptados para uma nova língua mais próxima à língua dinamarquesa onde cada palavra usada tem um significado mais abrangente que aquele dado pelo dialecto escolhido por Ibsen. E, depois, as palavras num palco não são apenas pronunciadas indiferentemente, são-no por pessoas que tem uma presença viva, que são um corpo vivo em palco e com um espaço que as rodeia. Tudo isto cria novas experiências e novas dimensões de significado. E claro, disso, algo novo surgirá.

Essa ideia levanta alguns problemas, nomeadamente ao nível da recepção e da fixação da crítica académica, por vezes tendencialmente apta a um julgamento consoante a maior ou menor fidelidade ao texto.

Isso tem a ver com a necessidade que a Academia sente em se assumir como “a” instituição que garante esse respeito. Mas mesmo esta reflexão sobre o papel do texto e a importância do autor é recente, tem duzentos anos, se tanto. Se eu pensar na cultura ocidental anterior ao século dezoito, em que o direito de autor não era sequer respeitado - porque o poeta escrevia um texto para uma companhia e a companhia fazia com ele o que bem entendia -, o importante era a performance e não o texto. Só no período elisabetiano é que a impressão foi inventada. Nessa altura um texto tinha várias versões: a que era apresentada em palco e a que figurava numa edição luxuosa, normalmente dedicada a um nobre e que circularia pela sociedade. Portanto, tínhamos diferente média à nossa disposição e o livro era um artefacto. Se pensarmos em termos editoriais, antigamente tínhamos os editores a mostrarem que as versões publicadas eram as autorizadas pelos autores. Hoje mostram-nos o processo todo e no fim percebemos que nunca se trata da versão final. Ou seja, até a nossa noção de artefacto mudou já que aquilo a que temos acesso é só uma parte do texto. E a Academia devia ser mais atenta ao facto de que um texto não é algo sagrado que não pode ser tocado. Portanto, porque é que temos que nos preocupar com a compreensão de um texto com mais de duzentos anos, por exemplo?

Mas certamente isso dependerá do modo como a história do teatro é pensada em cada país, nomeadamente ao nível da dramaturgia e o papel que esta ocupa na hierarquia teatral. A escola alemã é um exemplo dessa relação dessacralizada, ao passo que a escola francesa, que muito influenciou a realidade portuguesa, tende a recusar o autor e o texto como simples veículos mutáveis.

Sim, mas também que sociedade está a ser descrita. No caso alemão, desde o século dezoito que o teatro ocupa uma papel fundamental na sociedade. Isso tem a ver, historicamente, com a Declaração de Autonomia das Artes, onde ficou expresso que o Estado não deveria interferir na Arte, que é livre. Isto difere com uma ideia de Arte enquanto instituição moral, que supostamente deve ensinar. Nos Estados Unidos, por exemplo, o papel que o teatro representa é tão menor que quase se pode esquecer. E é por isso que eu acho que cada país constrói um outro género de história do teatro, que tem a ver com a sua importância no contexto onde se insere. Ora, enquanto houver um contexto com o qual se possa relacionar, a história do teatro terá que se mudar, que se adaptar. Tem que o fazer. Isto não tem nada a ver com desrespeito para com o autor ou o texto, já que uma peça foi escrita para ser representada e só pode ser representada quando inscrita num tempo particular, o das condições de apresentação, que é o seu e não outro.

Isso quer dizer que de cada vez que uma peça é apresentada, independentemente do tempo em que foi escrita, é a sua dimensão política – considerando aqui cada gesto artístico como um gesto político – que ganha relevância face às outras dimensões.

Depende do modo como encaramos o acto político. Eu acho que o teatro contemporâneo alemão é muito político, por exemplo. Não no sentido em que toma posições políticas directas, mas pelo modo como confronta os espectadores com novas experiências. E isso é uma dimensão muito importante no nosso teatro actual. O teatro está farto de mensagens. Nós estamos fartos de mensagens. Aquilo que o teatro nos proporciona, ou deve proporcionar, são experiências que, de certa forma, levem o espectador a reflectir sobre a própria experiência de ir ao teatro. Para que fui solicitado? Porque me irritei? Porque é que o meu coração estava a bater tão depressa? Porque me arrepiei? Que havia no espectáculo que não me deixou igual? Isto tem uma dimensão política que começa com o acto de percepção. Ou seja, não permitir que o espectador sinta apenas aquilo a que já está habituado a sentir, seja pela realidade ou qualquer convenção teatral. E é isso que eu chamo de ritual performático. Os antropólogos chamam-lhe eliminal space, in-between space. Não é possível lidar com o que percepcionamos a partir dos modelos de comportamento e reacção que carregamos. Precisamos encontrar novas formas para o fazer e que não nos são mostradas em palco. Isto é não só muito político como muito democrático porque pressupõe que cada espectador sentado numa plateia tem o potencial para lidar com o que lhe é dado, de modo a fazer algo com isso. Tanto a nível pessoal como politicamente.

Está a promover o fim dos contextos?

Não. Inevitavelmente acabamos sempre por ter coisas muito diversas. Quando eu vou ao teatro conhecendo a peça muito bem, mas também conhecendo o processo de criação do espectáculo, terei uma relação diferente do que um dos meus alunos que não a leu, nunca ouviu falar e simplesmente entra. Eu defendo que uma performance deve acreditar que terá um impacto em cada um dos espectadores, independentemente do background, porque é feita “agora”. Temos que ter em conta que este questionamento sobre texto/representação surge no contexto de gerações anteriores aos anos sessenta e setenta que sabiam tudo sobre os clássicos, e fazer algo que fosse contra isso era um acto político. Nessa altura deu-se aquilo que se convencionou chamar “o clashing dos clássicos”. Hoje, nomes como Frank Castorf por exemplo, já não pressupõem que os seus espectadores conhecem os textos mas exactamente o contrário: não conhecem. E é a representação que faz algo com os textos. Claro que é muito diferente se tivermos uma cultura que acredita que a sua identidade é construída a partir de um certo cânone textual. Isto acontecia na Alemanha no final do século dezanove quando só eram representadas tragédias gregas, clássicos alemães e Shakespeare. Era esse o cânone da sociedade burguesa alemã e ir contra essa ideia nos anos setenta representava algo de importante. Mas se olharmos para a cultura grega, por exemplo, eles acreditam que a sua imagem e auto-percepção se baseia apenas nos textos antigos escritos pelos poetas. E por isso, quando em 1986 um encenador grego fez as «Bacantes», onde apresentou uma imagem dos gregos enquanto selvagens tomando parte em rituais, muitos ficaram profundamente chocados. “Isto não somos nós!”. Mas ele podia regressar ao texto e provar que era assim. Aquilo que as pessoas exigiam não era o texto, mas um certo tipo de representações convencionais que reconheciam dos tempos em que eram novas e iam ao teatro. E esta ideia ainda existe com o público de ópera, por exemplo, que se consegue escandalizar quando alguém se desvia da convenção esperada.

Daí podermos falar da noção de limite. O que aconteceu recentemente com a ópera Idomeneo, na Deustche Oper, em Berlim, cancelada para evitar conflitos religiosos, pode alertar-nos para essa necessidade de limites numa altura em que estas questões surgem como um tema sensível.

Não podemos impor limites genéricos. Mas é claro que temos que olhar para determinados contextos quando fazemos escolhas, e perceber se por razões éticas ou políticas, por exemplo, será sensato fazer determinada opção, mas não no sentido da imposição. Excepção feita para o copyright, que está protegido pela lei, qualquer outro tipo de limites não está a coberto de leis. Está no juízo de quem faz decidir se deve ou não continuar. No que diz respeito à religião, parece-me que lidamos com algo completamente diferente e que são questões práticas. Se alguém tem medo, não faz. Não é uma lei que vai dizer qual é o limite. E depois, claro, é uma questão de coragem. No caso de Idomeneo, não são os muçulmanos que estão em causa, mas todas as religiões. As cabeças de Cristo, Maomé e Buda aparecem cortadas, por igual. Não vejo uma razão particular para que devesse ser cancelada. Claro que poderíamos dizer que o teatro poderia ter chegado junto do encenador e dizer: «actualmente a situação é algo problemática, ninguém vai reparar nas cabeças de Cristo e Buda, és tão inventivo, será que não tens nenhuma outra ideia para o final?» Portanto, é uma questão de responsabilidade individual.

Mas é verdade que hoje se tornou difícil falar de religião uma vez que qualquer acção pode tomar proporções inimagináveis.

Não é falar de religião, de uma maneira geral, mas de uma certa religião, a muçulmana. Porque com as outras pode fazer-se o que se quiser. Cristo já foi tantas vezes posto em palco e nada aconteceu. Olhe o exemplo recente da Madonna [que no último concerto aparece numa cruz e usando uma coroa de espinhos]. Claro que há sempre alguns que se ofendem, mas escolhem não ir.

Como lidar com este fenómeno se, na nossa sociedade, e desde sempre, a religião foi usada nos palcos das mais diversas formas, da veneração ao ridículo? Deveremos alterar os nossos comportamentos e noções de liberdade, mesmo que tenhamos sempre convivido com outras religiões, só porque se tornou problemático abordar o islamismo?

Eu acho que a ridicularização é gratuita. Qual o sentido disso? A religião não é, por ela mesma, sagrada. Tem raízes históricas, e questioná-las, no que nos afecta e como lidamos com isso está no direito de cada Estado. Por outro lado, convivendo com outras religiões e sabendo da sua sensibilidade em relação a certas formas de expressão, temos que nos perguntar se o que fazemos vai ofender outras pessoas. É uma questão de ética. O que se ganha com isso? É o caso das caricaturas de Maomé que, para mim, só provaram, ridiculamente, que podemos dizer tudo o que quisermos. Qual foi o sentido disso? Mas no caso de Idomeneo há um sentido no uso das cabeças cortadas.

São os danos colaterais do 11 de Setembro, que nos deixou na dúvida de saber se o que mudou foi a arte ou a nossa concepção de arte.

Bom, em certas partes dos Estados Unidos a religião, e lidar com ela artisticamente, foi sempre um problema. Não temos só fundamentalistas islâmicos. Nem sequer só fundamentalistas religiosos. Hoje em dia há quem queira proibir que se fume em palco [ver reportagem sobre peça em Edimburgo]. E isso obriga-nos a ter que anunciar que vamos lidar com este ou aquele assunto, o que é um problema. Mas mesmo que esse não seja o caso generalizado da nossa cultura, há sempre alguém que se vai sentir ofendido e acusar os autores de blasfémia. Ou seja, não é algo novo e que surgiu depois do 11 de Setembro, sempre existiu. O que é novo é o facto de não se tratar do catolicismo, mas da religião muçulmana que, anteriormente, as pessoas não se apercebiam que estava lá, mas que já punha estas questões. E aquilo que temos que perceber é como é que a arte muda quando lida com esse tema.

Aquilo que o ataque às Torres Gémeas provocou foi um enfoque particular em cada intervenção pública, expondo qualquer acção ao grande público e não somente aos nichos que já lidavam com a questão.

E por isso é que a questão se coloca ao nível da ética. As pessoas reagem assim por valores éticos ou porque têm medo do que possa acontecer? E isto faz grande diferença. O facto de alguém ter medo não tem nada a ver com arte. As razões estéticas e éticas estão relacionadas, mas a questão de saber o que é ético na arte é uma questão estratégica. Se eu souber que alguma das minhas acções artísticas vai ter consequências que nada têm que ver com a arte, tenho que decidir se as quero fazer. E se recuar, é perfeitamente compreensível, mas não tem nada que ver com o que pode ou não pode a arte fazer. Se durante uma performance numa casa, tudo começar a arder, devo ir apagar o fogo ou continuar? Seria idiota não o fazer.



Erika Fisher-Lichte é professora no departamento de teatro do Institut für Theaterwissenschaft da Universidade de Berlim. É uma das mais influentes figuras do pensamento teatral europeu, e autora de diversos livros e artigos, entre os quais, o fundamental Semiothics of Theatre (2001) e Theatre, Sacrifice, Ritual. Exploring Forms of Political Theatre (2005). Tem-se destacado pelas suas defesas apaixonadas do teatro enquanto arte viva e em permanente relação com a sociedade. Ler aqui, aqui, aqui e aqui alguns artigos de sua autoria ou recensões ao seu trabalho publicado.


Agradecimentos : Bureu K3, Institut für Theaterwissenschaft. Com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Roberto Cimetta Fund

Em Dezembro no dossier O Olhar Crítico: Franz Anton Cramer, crítico de dança e ensaísta

1 comentário:

Anónimo disse...

Citado

(...)Hoje, nomes como Frank Castorf por exemplo, já não pressupõem que os seus espectadores conhecem os textos mas exactamente o contrário: não conhecem. E é a representação que faz algo com os textos(...)


Convém esclarecer, para quem não sabe, que o "texto" em Carstorf é o "The Sun" e o "Bild", que toda a gente naturamente conhece... .
Ou a cruz suástica, cristo e o grotesco servidos em pallete de instalação.
Que irrita algumas comadres bávaras... mas só mesmo essas.


(...)Porque me irritei? Porque é que o meu coração estava a bater tão depressa? Porque me arrepiei? Que havia no espectáculo que não me deixou igual? Isto tem uma dimensão política que começa com o acto de percepção. Ou seja, não permitir que o espectador sinta apenas aquilo a que já está habituado a sentir, seja pela realidade ou qualquer convenção teatral(...)

Se Castorf tem um dimensão política eu diria que se centra apenas na escandalografia.

Se o teatro alemão contemporâneo é politíco, apenas o concebo como tal, se for entendido numa literalidade figurativa, que só tem paralelo nalguma critíca regional.

Politicamente falando (um jargão crítico que anda na moda) a alemanha atravessa uma crise notável de falta de..."Política"... .

Convém também lembrar que Berlim- cidade e as suas universidades até há 10 anos eram uma aldeia no contexto do pensamento crítico alemão.

Que existe um possível ponto de viragem, não há dúvida, mas a polarização entre um teatro "burguês" (Schaubühne) e outros teatros supostamente politicos ainda está nos antípodas de qualquer coisa viva... .