ncritica de teatro
Atteintes à sa vie
25 Novembro 2006, 20h30
Paroles d’acteurs/Variations
27 Novembro 2006, 19h00
de Martin Crimp
encenações de Joël Jouanneau
Thèâtre de la Cité Internacional, Paris
Salas quase cheias
A palavra como motor de acção
O dramaturgo britânico Martin Crimp fez figura de estrela no 35º Festival d’ Automne onde, no total, apresentou cinco peças e uma ópera. Um programa vasto e mais ou menos abrangente que prolonga uma colaboração que o próprio festival iniciou em 2002 com outras duas peças, Aufdem Land e Le Traitement,e em 204 com Creul and Trender, mas também amplia o trabalho de tradução de Moliére, Genet ou Koltés que Crimp tem desenvolvido nos últimos anos. Crimp, que se distingue da escatologia do in-yer-face theatre pelo modo como em vez de acusar procura reflectir, tem construído um percurso dramatúrgico onde aquilo que ficou conhecido pelo realismo britânico é dissecado em nome de uma compreensão da sociedade britânica dos últimos vinte e cinco anos. Ou seja, atravessa toda a rigidez tatcheriana e procura uma solução para os anos pós-Blair. Sim, é também e sobretudo, um teatro político, comprometido e atento.
Este ano, para além da peça radiofónica «Definitively the Bahamas» (encenação de Loui-Do de Lencquesaing, Thèâtre Ouvert, 07 a 11 Novembro) e da ópera «Into the little hill» (com música de George Benjamin, Òpera National de Paris, 22 a 24 Novembro), encomenda do próprio festival, duas das encenações, «Atteintes à sa vie» (13 Novembro a 03 Dezembro) e «Paroles d’acteurs/Variations» (27 Novembro a 02 Dezembro), foram assinadas pelo mesmo nome, Joël Jouanneau, e apresentadas no Thèâtre de la Cité Internationale.
Jouanneau também ele dramaturgo – entre 1987 e 2002 escreveu catorze peças -, e que enquanto encenador tem procurado, a partir de Beckett, Pinget, Bernard, Walser ou Jelineck, encontrar nos textos um lugar para o actor, encena Crimp que, na sua busca de uma responsabilidade do indivíduo face à violência da sociedade contemporânea (culpado ou vítima?) lhe parece servir para uma reflexão em torno da palavra enquanto motor de acção. Essa mesma ideia presidiu ao convite que a associação Adami, que zela pelos direitos de autor, dirigiu ao encenador para que, no quadro da 12ª edição do projecto «Paroles d’acteurs», 11 jovens actores pudessem trabalhar de perto com um “mestre”.
«Paroles d’acteurs/Variations» é, por isso, um conjunto de três leituras encenadas (o termo francês mise-en-space é bem mais adequado, já que significa «colocar no espaço») que reúne textos inéditos em França, «Personne ne voit la vidéo» (1991), «Clair en affaires» (1989) e «Piéce avec répetitions» (1990 - esta última apresentada em Portugal pela Assédio), onde a bulimia de Crimp se vira directamente para a classe média-baixa britânica, presa a uma série de dificuldades que a impedem de estabelecer relações entre si. Há secretárias, burocratas, actores sem trabalho, jovens adultos sem futuro, muitas horas passadas em bares, agentes imobiliários, casais com problemas conjugais, mulheres incapazes de se deixar seduzir, homens que tendo tudo ambicionam sempre mais, crenças em ajudas espíritas, questionários de rua, casamentos por consumar, muita comida congelada, muita cerveja, alguma violência, pressão psicológica, noites sem dormir e várias horas à espera que o telefone toque. Os textos falam de personagens perdidas em dilemas aparentemente banais mas que lhes condicionam o acesso a uma vida mais equilibrada (ou mais justa, ou mais útil) e envolvem quase sempre o problema da escolha. Escolha essa que, irremediavelmente, levará a novos dilemas e novas angústias.
É o próprio encenador que reconhece que as peças evocam Beckett, Pinter e Kafka. E que a disposição cénica faz lembrar Brecht, ou Lars von Trier em «Dogville» pelo seu simples desenho de marcas no chão. E não deixa de ser curioso que Jouanneau dê um exemplo para-teatral para justificar opções que se cingem ao mais profundo e básico jogo de teatro: o actor face a um texto dentro de um espaço não identificável que ganhará forma pelo desenrolar da acção e baseado na crença do espectador. Contudo, o dispositivo de montra é por demais evidente, o elenco, que alternará entre si todas as noites, é desigual (elas, no geral, melhores que eles), e a encenação belisca o mínimo possível nos textos que vivem do diálogo rápido, da amargura e do desespero das personagens. Mas a angustiante banalidade das palavras de Crimp sobrevive intacta a este exercício egótico que, apesar de tudo, é capaz de fazer accionar, através do modo disruptivo como se organiza e o mono-cromatismo dos figurinos, uma metáfora evidente para os estados de espírito pré-ruptura em que se encontram todas aquelas figuras.
Em ruptura está também Anne, ou Annie, Anya ou Anny, figura central dos dezassete quadros teatrais que compõem «Atteintes à sa vie». Uma mulher sobre a qual todos especulam mas ninguém viu e muito menos se dá a ver. Submissa, prostituta, refugiada, actriz, adolescente, mãe, escrava ou sem amarras, esta é uma mulher que Martin Crimp nos apresenta como hipótese de confrontação com uma sociedade de consumo, de espectáculo, de hiper-velocidade, decadente e sem moral. Um quadro negro que Jouanneau faz por equilibrar num espectáculo construído sob a forma de um longo recital melodramático ausente de humor.
As palavras de Crimp, de um cinismo aterrador, obrigam a encenação à criação de mecanismos de salvaguarda do movimento e da acção. Um deles é o autocolante colocado numa das extremidades do palco e que anuncia que todas as acções estão a ser controladas por vigilância electrónica. Outra a existência de um compére (Hedi Tillette de Clermont-Tonnerre), como nos musicais, que vai libertando a tensão das sequências com pequenos apartes ou transformações visuais. E ainda, existe um permanente jogo entre cena e ecrã, através da captação de imagens em decaláge; entre o coro de homens de negro e a sequência onde uma nova mulher se apresenta; mas sobretudo numa lógica narrativa que expõe a estrutura dramatúrgica – por vezes talk-show, outras vezes reality-show, ou ainda where is it going to hurt more-show -, sem preencher os vazios, esses momentos directos de confronto.
«Atteintes à sa vie» não é sempre equilibrado, nem sequer as interpretações estão ao mesmo nível, nem das sequências nem das várias mudanças de personagens no mesmo intérprete. A encenação recorre, por vezes, às mesmas soluções cénicas para terminar os vários quadros ou apresentar as personagens (os dois momentos da rapariga refugiada são, nesse aspecto, histriónicos e incapazes de dar a resposta certa à leitura regurgitante que Crimp faz dos atentados à dignidade humana). Mas, no fim, há uma profunda sensação de incompreensão, de injustiça e de impotência que parte do texto. Jouanneau dá às palavras de Crimp uma hipótese de inscrição no imaginário de uma sociedade que não quer lidar com a memória. Uma realidade onde várias Annes – que somos todos nós, é mais do que certo e evidente – se podem perder para sempre. E a culpa, é isso que Crimp quer denunciar, morre sempre solteira.
Atteintes à sa vie
25 Novembro 2006, 20h30
Paroles d’acteurs/Variations
27 Novembro 2006, 19h00
de Martin Crimp
encenações de Joël Jouanneau
Thèâtre de la Cité Internacional, Paris
Salas quase cheias
A palavra como motor de acção
O dramaturgo britânico Martin Crimp fez figura de estrela no 35º Festival d’ Automne onde, no total, apresentou cinco peças e uma ópera. Um programa vasto e mais ou menos abrangente que prolonga uma colaboração que o próprio festival iniciou em 2002 com outras duas peças, Aufdem Land e Le Traitement,e em 204 com Creul and Trender, mas também amplia o trabalho de tradução de Moliére, Genet ou Koltés que Crimp tem desenvolvido nos últimos anos. Crimp, que se distingue da escatologia do in-yer-face theatre pelo modo como em vez de acusar procura reflectir, tem construído um percurso dramatúrgico onde aquilo que ficou conhecido pelo realismo britânico é dissecado em nome de uma compreensão da sociedade britânica dos últimos vinte e cinco anos. Ou seja, atravessa toda a rigidez tatcheriana e procura uma solução para os anos pós-Blair. Sim, é também e sobretudo, um teatro político, comprometido e atento.
Este ano, para além da peça radiofónica «Definitively the Bahamas» (encenação de Loui-Do de Lencquesaing, Thèâtre Ouvert, 07 a 11 Novembro) e da ópera «Into the little hill» (com música de George Benjamin, Òpera National de Paris, 22 a 24 Novembro), encomenda do próprio festival, duas das encenações, «Atteintes à sa vie» (13 Novembro a 03 Dezembro) e «Paroles d’acteurs/Variations» (27 Novembro a 02 Dezembro), foram assinadas pelo mesmo nome, Joël Jouanneau, e apresentadas no Thèâtre de la Cité Internationale.
Jouanneau também ele dramaturgo – entre 1987 e 2002 escreveu catorze peças -, e que enquanto encenador tem procurado, a partir de Beckett, Pinget, Bernard, Walser ou Jelineck, encontrar nos textos um lugar para o actor, encena Crimp que, na sua busca de uma responsabilidade do indivíduo face à violência da sociedade contemporânea (culpado ou vítima?) lhe parece servir para uma reflexão em torno da palavra enquanto motor de acção. Essa mesma ideia presidiu ao convite que a associação Adami, que zela pelos direitos de autor, dirigiu ao encenador para que, no quadro da 12ª edição do projecto «Paroles d’acteurs», 11 jovens actores pudessem trabalhar de perto com um “mestre”.
«Paroles d’acteurs/Variations» é, por isso, um conjunto de três leituras encenadas (o termo francês mise-en-space é bem mais adequado, já que significa «colocar no espaço») que reúne textos inéditos em França, «Personne ne voit la vidéo» (1991), «Clair en affaires» (1989) e «Piéce avec répetitions» (1990 - esta última apresentada em Portugal pela Assédio), onde a bulimia de Crimp se vira directamente para a classe média-baixa britânica, presa a uma série de dificuldades que a impedem de estabelecer relações entre si. Há secretárias, burocratas, actores sem trabalho, jovens adultos sem futuro, muitas horas passadas em bares, agentes imobiliários, casais com problemas conjugais, mulheres incapazes de se deixar seduzir, homens que tendo tudo ambicionam sempre mais, crenças em ajudas espíritas, questionários de rua, casamentos por consumar, muita comida congelada, muita cerveja, alguma violência, pressão psicológica, noites sem dormir e várias horas à espera que o telefone toque. Os textos falam de personagens perdidas em dilemas aparentemente banais mas que lhes condicionam o acesso a uma vida mais equilibrada (ou mais justa, ou mais útil) e envolvem quase sempre o problema da escolha. Escolha essa que, irremediavelmente, levará a novos dilemas e novas angústias.
É o próprio encenador que reconhece que as peças evocam Beckett, Pinter e Kafka. E que a disposição cénica faz lembrar Brecht, ou Lars von Trier em «Dogville» pelo seu simples desenho de marcas no chão. E não deixa de ser curioso que Jouanneau dê um exemplo para-teatral para justificar opções que se cingem ao mais profundo e básico jogo de teatro: o actor face a um texto dentro de um espaço não identificável que ganhará forma pelo desenrolar da acção e baseado na crença do espectador. Contudo, o dispositivo de montra é por demais evidente, o elenco, que alternará entre si todas as noites, é desigual (elas, no geral, melhores que eles), e a encenação belisca o mínimo possível nos textos que vivem do diálogo rápido, da amargura e do desespero das personagens. Mas a angustiante banalidade das palavras de Crimp sobrevive intacta a este exercício egótico que, apesar de tudo, é capaz de fazer accionar, através do modo disruptivo como se organiza e o mono-cromatismo dos figurinos, uma metáfora evidente para os estados de espírito pré-ruptura em que se encontram todas aquelas figuras.
Em ruptura está também Anne, ou Annie, Anya ou Anny, figura central dos dezassete quadros teatrais que compõem «Atteintes à sa vie». Uma mulher sobre a qual todos especulam mas ninguém viu e muito menos se dá a ver. Submissa, prostituta, refugiada, actriz, adolescente, mãe, escrava ou sem amarras, esta é uma mulher que Martin Crimp nos apresenta como hipótese de confrontação com uma sociedade de consumo, de espectáculo, de hiper-velocidade, decadente e sem moral. Um quadro negro que Jouanneau faz por equilibrar num espectáculo construído sob a forma de um longo recital melodramático ausente de humor.
As palavras de Crimp, de um cinismo aterrador, obrigam a encenação à criação de mecanismos de salvaguarda do movimento e da acção. Um deles é o autocolante colocado numa das extremidades do palco e que anuncia que todas as acções estão a ser controladas por vigilância electrónica. Outra a existência de um compére (Hedi Tillette de Clermont-Tonnerre), como nos musicais, que vai libertando a tensão das sequências com pequenos apartes ou transformações visuais. E ainda, existe um permanente jogo entre cena e ecrã, através da captação de imagens em decaláge; entre o coro de homens de negro e a sequência onde uma nova mulher se apresenta; mas sobretudo numa lógica narrativa que expõe a estrutura dramatúrgica – por vezes talk-show, outras vezes reality-show, ou ainda where is it going to hurt more-show -, sem preencher os vazios, esses momentos directos de confronto.
«Atteintes à sa vie» não é sempre equilibrado, nem sequer as interpretações estão ao mesmo nível, nem das sequências nem das várias mudanças de personagens no mesmo intérprete. A encenação recorre, por vezes, às mesmas soluções cénicas para terminar os vários quadros ou apresentar as personagens (os dois momentos da rapariga refugiada são, nesse aspecto, histriónicos e incapazes de dar a resposta certa à leitura regurgitante que Crimp faz dos atentados à dignidade humana). Mas, no fim, há uma profunda sensação de incompreensão, de injustiça e de impotência que parte do texto. Jouanneau dá às palavras de Crimp uma hipótese de inscrição no imaginário de uma sociedade que não quer lidar com a memória. Uma realidade onde várias Annes – que somos todos nós, é mais do que certo e evidente – se podem perder para sempre. E a culpa, é isso que Crimp quer denunciar, morre sempre solteira.
7 comentários:
Tiago,
A "Pièce avec répétitions" foi de facto feita pela Assédio mas com o título... "Peça com repetições". "(A)tentados" é o título português da peça que em francês se chamou "Atteintes à sa vie" (que não conserva a ambiguidade do título inglês, "Attempts on her life": "atentados contra"/"tentativas sobre"). Para baralhar a divisão entre o "in-yer-face" e o resto (e é verdade que Crimp está muito mais próximo de uma autora como Caryl Churchill): o "Attempts on her life" junta lirismo, violência e experiências com a forma - não admira portanto que tenha influenciado muitíssimo Sarah Kane, que sem ele não teria escrito "Falta (Crave)"...
Abraços
FF
Não é Martim Crimp mas sim Martin Crimp. Não acho grave mas a Mónica Guerreiro pode não gostar. Ela não gosta de erros ortográficos mesmo quando se trata de nomes próprios.
que bom que é ter leitores atentos. eu ja tnha dado pelos 2 erros mas o acesso à net era restrito. ja esta alterado.
ainda falta emendares um. o do titulo do qual faço paste:
O Melhor Anjo no 35º Festival d’Automne: Joël Jouanneau encena Martim Crimp
lololololol
O debate lá em baixo no post Reacções fervilha de alegria.
Folgo em saber que tenho tanta influência. É bom contribuir para aguçar o espírito crítico das pessoas.
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