domingo, novembro 12, 2006

Dur dur d’être un mythe (crítica de teatro: Electra, com Jane Birkin)

crítica de teatro

Dur dur d’être un mythe

Electra
de Sófocoles
Encenação de Phillippe Calvario
Le Quartz – Scéne Nationale de Brest, França
10 Novembro 2006, 20h30
Lotação Esgotada

Electra, filha de Agamémnon e irmã de Orestes, quer vingar a morte do pai, perpetrada pela mulher Clitemnestra e o amante, Egisto. Mulher abandonada numa terra onde não é querida, a força de Electra sustenta-se nesse desejo de vingança, entre a culpa e a cegueira, mesmo que se apresente como “aquela que já não tem forças para lutar”. À sua volta um coro de mulheres acompanha o lamento, oscilando entre o incitamento à vingança e o temor pelo poder do par assassino. A tragédia, escrita por Sófocles há mais de 2500 anos, acabará por se abater na casa dos Átridas, modelo por excelência da família disfuncional onde as relações de poder se jogam permanentemente até à morte - foi Goethe que escreveu que “o caminho onde marchamos é o caminho da morte”. E a morte, que contaminou já os corpos de todas estas figuras, assombra o futuro de cada uma delas, marcando-lhes os gestos, as palavras e as acções, como se nada mais valesse a pena. Como se da vida nada mais houvesse a esperar.

É este lado negro e operático que Philippe Calvario, encenador associado do Le Quartz – Scéne National de Brest, explora numa encenação formal e sem grandes rasgos estéticos ou dramatúrgicos. Não obstante, reside nessa opção a capacidade de fazer circular em torno da instabilidade emocional de Electra um conjunto de personagens suficientemente dementes, viciadas e iludidas. Provavelmente, o modo como caracteriza esta Electra como uma mulher que da vida já não espera nada e, por isso, entre o cadáver e o espírito guerreiro, é a chave para compreender um texto pleno de tensão, actualidade e negritude.

Cada palavra e cada gesto servem a intenção de dar a conhecer um quadro pintado a cores fortes onde pouco mais parece ser necessário. Por isso, o cenário – apesar de uma inacreditável maquinaria que faz entrar uma despropositada escada com degraus elevatórios - é uma maqueta do palácio onde Electra não é bem vinda e nem ela nem nós passamos da porta. É no terreiro onde crava as unhas para aliviar o peso da morte do pai que tudo se passa. E a luz que vem das portas translúcidas deixa imaginar que aquele não é terreno seguro para um plano de vingança. A música, composta por Éric Neveux, transforma o coro tanto em hienas como em harpias, com a voz profunda e solitária de Biyouna, a intérprete senegalesa que faz de Corifeu e saída de um ritual satânico, a transportar-nos para uma outra dimensão. Essa dimensão paralela de onde parece ter saído a razão que justifica a escolha de alguém como Jane Birkin para o papel principal.

Se é certo que Birkin estaria mais para Helena que para Electra, também não é menos verdade que a diva dos sonhos eróticos das gerações do amor livre faz de tudo para que nos esqueçamos do seu característico e perturbador francês com sotaque inglês, do seu corpo onde se projectaram fantasias, do seu olhar cerrado e das suas mãos enérgicas. Antes utiliza tudo isso – as suas mais valias e aquilo que dela se espera – para construir uma figura amarga, quase descrente mas nem por isso menos trágica no seu papel de vítima de um destino que não desejou.

Negra, velha e curvada, Birkin carrega um espectáculo feito à sua medida. Mas fá-lo sem que alguma vez a interpretação soe prepotente, feita à aclamação ou desligada das intenções da personagem. Depressa nos apercebemos que há nela um desejo enorme de apagamento nas palavras do texto, no equilíbrio entre as outras interpretações. Nenhuma, no entanto, tão intensa e explorada quanto a dela. Seja porque é claro o fascínio do encenador pela figura que ela foi, seja porque as direcções dadas aos outros actores os fazem bonecos de uma comédia triste, quase patética, hiper-trágica. Não existe um espectáculo que faça jus ao trabalho de Birkin. Nem na contra-cena, cómica onde devia ser sórdida, falsa onde devia ser cruel. Nem na direcção, em traços largos quando devia ser pontual. Nem no resultado final que, se mantém a acuidade do texto de Sófocles, o perde numa cena quase vazia, metafórica e literalmente.

O drama de Electra, a mulher-sobrevivente que esperou vinte e cinco anos para vingar a morte do pai, é um veículo para a estrela que, humilde, mais não faz do que nos pedir para que a olhemos como actriz de corpo e palavra inteira. Seguimo-la, mais por cumplicidade (da personagem? do mito?) do que por compaixão, porque, tal como diz Nietzche citado no programa, “a vida não é possível senão graças ás ilusões da arte”.



texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian

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