domingo, outubro 29, 2006

CNB apresenta Stravinsky - excertos do texto do programa

Excertos, alguns inéditos, do texto de minha autoria, publicado no programa Dançar Stravinsky, que a Companhia Nacional de Bailado apresenta até ao próximo fim-de-semana no Teatro Camões, em Lisboa.

A construção do olhar

Não se pode (nem se deve) tentar resumir a história e a importância dos Ballet Russes em meia dúzia de linhas contextualizadoras num programa de espectáculo. O impacto histórico, tanto a nível social como cultural, do projecto artístico do russo Sergey Diaghliev (1872-1929), ressoa ainda hoje em propostas contemporâneas que procuram provocar no espectador aquilo a que gostaria de chamar, a construção do olhar. Num dos mais relevantes contributos para a compreensão do fenómeno que os Ballet Russes constituíram, Diaghliev’s Ballet Russes, a crítica e investigadora Lynn Garafola inclui um elucidativo estudo sobre o público daquela companhia.

Diz a autora que o empresário, soube trabalhar, como nenhum outro, o fascínio que em Paris se vivia pelo Oriente. Os artistas russos tinham sido responsáveis por aquilo a que hoje apelaríamos de diálogo inter-cultural. Uma legião de financiadores, gente da alta burguesia e estrangeiros que encontravam na dança proposta por Diaghliev um espaço para o deslumbre e o fascínio, não hesitavam em agradecer ao empresário as horas passadas num teatro (logo aqui uma ideia de entretenimento que o repugnava). Ajudado pelo também empresário Gabriel Astruc, Diaghliev movia-se nos grandes círculos da política, das finanças e das artes, granjeando a fama dos seus ballets.

O seu programa de intenções passava por uma vontade de educar o público, sobretudo formando-os a partir das suas combinações estéticas e artísticas. Diaghliev montou uma máquina de sedução que incluía ensaios abertos, artigos pagos nos jornais feitos por nomes como os do poeta Jean Cocteau, galas de beneficência, e a aposta em novos nomes que dessem ao público o que ele nunca tinha encontrado. É a partir deste princípio provocatório que o empresário se reúne de um conjunto de nomes, na música, coreografia, pintura e cenografia, constituindo uma das mais míticas companhias de dança de sempre, responsável pela renovação do discurso balético no Ocidente.

As duas peças que a Companhia Nacional de Bailado reúne sob a égide do seu compositor, Igor Stravinsky (1882-1971), são parte do legado dos Ballet Russes, constituindo um estimulante díptico sobre o exotismo russo. Tanto Pássaro de Fogo (1910) como Sagração da Primavera (1913) se partem de contos ou lendas tradicionais russas (como outras peças românticas partiam do folclore alemão ou do Norte da Europa), alicerçam-se em estruturas dramatúrgicas que procuravam contrastar com alguma vacuidade romântica, justificativa de tanto virtuosismo interpretativo.

[...]

«A Sagração da Primavera é uma obra musico-coreográfica. São as imagens de uma Rússia pagã unidas por uma só ideia fundamental: o mistério do surgimento do poder criador da primavera. Não há nada de anedóctico». (Boucourechlier em Christout: s/p). Nijinsky respondia assim, à letra, à afirmação de Stravinsky: “não há intriga… é uma série de cerimónias da antiga Rússia” (Daily Mail, 13 Fevereiro 1913). Corpos que deitavam por terra toda uma tradição de passividade na interpretação masculina; sequências de nítida carga erótica; rituais tribalistas com perseguições a virgens que seriam sacrificadas; as posições dos pés – as tão clássicas e consensuais posições dos pés – vítimas de um ataque maneirista, voltados para dentro seguindo movimentos que nasciam da pélvis, nitidamente acompanhando rompimentos na pintura, no cinema, na arquitectura; braços levantados aos céus como se garras saíssem deles para o agarrarem; o pescoço curvado, criando um ângulo quase abjecto com os joelhos flectidos; intérpretes a dançarem de costas para o público; bailarinas a caírem no chão… A construção que Nijisnky fez a partir da obra apocalíptica de Stravinsky – tão mais apocalíptica por prenunciar um século de prolongados Invernos belicistas – deu ao corpo dos bailarinos uma carne incomum às coreografias da época. Há neles uma agressividade, uma atitude quase paranóica e obsessiva, uma angustiante vontade de se ultrapassarem.

O poeta Jean Cocteau recordaria que a reacção do público, composta de aficionados da ópera e habitues do ballet, era de tal forma ensurdecedora que rapidamente o teatro se transformou numa batalha campal. A pintora Valentine Gross-Hugo falaria de um verdadeiro terramoto. A música mal se ouvia, mas o maestro Pierre Monteaux tentava ainda assim conduzir a orquestra. Stravinsky abandonaria a sala a meio da representação. Nijinsky gritava os tempos para os bailarinos, exigindo-lhes mais energia. Os intérpretes, cuja resistência à criação tinha levado à ira o coreógrafo, que passou a falar-lhes através dos assistentes, esforçavam-se por ignorar um público que só a polícia conseguiria acalmar. O escritor Marcel Proust, que assistiu ao espectáculo, escreveu a Gabriel Astruc, assegurando-lhe que as dificuldades vividas inscreveriam a peça na história da arte, muito mais depressa do que se tivesse sido um sucesso imediato. No dia seguinte a imprensa chamou ao escândalo de Diaghliev, «Le massacre du printemps». E, no entanto, o empresário diria, convicto: “C’est tout ce que je veux!”.

Stravinsky acabou por se render, apesar de acusar o coreógrafo de lhe assassinar a peça: “As suas lacunas eram tão graves que não podiam ser senão compensadas pelas suas visões plásticas, por vezes de uma verdadeira beleza” (Christout: s/p). O próprio as designaria, mais tarde, como erros feitos por alguém que ninguém amava (Nijinski: 2000, 153).

Nos seus cadernos, escritos cinco anos depois de Sagração…, são várias as notas que são conta dessa energia. Numa comovente passagem, Nijinsky expõe-se: “Eu trabalhava bastante a dança, por isso me sentia sempre esgotado. Mas fingia sempre não o estar, e estar contente para que Diaghliev não se aborrecesse.” (2000: 154). E só isso teria permitido que alguém, mesmo que homossexual e contrário a qualquer manifestação mais efeminada nos seus ballets - muito pour cause da ideologia dominante da classe média novecentista que lhe enchia as salas -, aceitasse uma interpretação, que sendo claramente animal e sexual, vivia ambiguamente na fronteira dos géneros.

[...]

Millicent Hodson e Kennet Archer são responsáveis por esta Sagração da Primavera que a Companhia Nacional de Bailado apresenta. […] o trabalho de Hodson, coreógrafa e bailarina, e Archer, historiador de arte, assemelha-se mais ao de um restaurador de uma pintura que, afastando-se da mera responsabilidade de devolver a obra em melhores condições, nos faz descobrir nela não só as cores originais, mas todas as intenções do pintor. Basta olhar para o modo como a peça se inscreve num fazer contemporâneo, para perceber que está longe de passar por uma simples ideia de remontagem. Até porque o que existia, além dos cadernos, eram fragmentos de desenhos de Valentine Gross-Hugo e poucas fotografias a preto e branco já comidas pelo tempo.

A dança, a mais efémera das artes, ganha aqui novo sentido. O que nos é oferecido é antes um mergulho profundo e sincero num universo envolvente que, para sermos honestos, traça linhas profundas que ainda hoje percorrem grande parte da criação contemporânea. O que torna fascinante esta abordagem pouco formatada das obras clássicas, abrindo assim pistas para uma apreensão mais ampla dos objectivos originais das peças, é o denunciar de dimensões que sempre existiram, mas que o tempo (seja por preconceito, falta de memória ou incapacidade de catalogação) fez esquecer.

Se o que se mostra não pode ser o que Nijinsky criou - e, contudo, estão lá 85% da coreografia original, 80% dos figurinos e 50% dos acessórios (Riding: 1990, s/p) -, ajuda-nos, no entanto a deslocar para as criações contemporâneas essa reflexão sobre a relação entre coreografia e partitura. Tal como, aliás, era a intenção de Diaghliev ao convidar Stravinsky para a sua companhia. Importa, por isso, pensar como olhamos para esta peça de 1913, um século passado de outras construções que a perpetuaram. Recordo, entre outras, as versões de Maurice Béjart (1959), Pina Bausch (1975), Mats Ek (1984), Martha Graham (que dançou a peça em 1930 e a coreografou em 1984, reencontrando uma das mais fortes imagens de marca do seu trabalho corporal – esses movimentos nascidos da pélvis), Marie Chouinard (1998), Angelin Preljocaj (2001) ou Shen Wei (2004) que vão todas beber ao original, provando a intemporalidade dessa criação.

Mas estará a sociedade contemporânea mais preparada para receber hoje, quando o sexo e a violência em cena se tornaram um lugar comum, os falos de Chouinard, as mulheres já não vítimas mas sedutoras de Preljocaj, os corpos brancos e vazios de acção de Wei, as dimensões de terror, trevas e pânico criadas por Bausch, ou a mais absoluta negação da coreografia original por Mats Ek? Como colocar, num mesmo plano, a Sagração… original com obras tão diversas como as de Bausch ou Chouinard? Precisamente pensando, por um lado, no corte que cada uma delas provoca no discurso de quem assina e na envolvente; por outro, considerando que o movimento surge a partir de escolhas e recusas, tão mais legítimas quanto conscientes de um passado. [...] A dança, em tudo aquilo que tem de figurativo e simbólico deve, dessa forma, ser entendida como um permanente discurso em mudança. Foi assim que Diaghliev pensou os seus Ballet Russes. Deve ser assim para cada escolha.
[...]

Bibliografia:
CHRISTOUT, Marie-Françoise, Le Sacre du Printemps – cahier pédagogique, http: //www.cndp.fr/balletrusse/pedago/sacre.htm ;
GARAFOLA, Lynn, Diaghliev’s cultivated audicence, The Routledge Dance Studies Reader, Routledge, Londres, 2004;
NIJINSKY, Vaslav, Cahiers, Babel/Actes Sud, Paris, 2000 ;
RIVIÉRE, Jacques, Le Sacre du Printemps, What is dance ?, Oxford Univeristy Press, Oxford 1983;

Para saber mais sobre o trabalho de Millicent Hodson ver: McCARTHY, Suzanne, Putting the Pieces Together: the work of Millicent Hodson and Kenneth Archer, http://www.ballet.co.uk/magazines/yr_02/sep02/interview_millicent_hodson.htm, Setembro 2002
Dançar Stravinsky, Companhia Nacional de Bailado, Teatro Camões, Lisboa.
29 Outubro e 05 Novembro - 16h00 03 e 04 Novembro - 21h00
Teatro Camões: 21 892 34 77

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