por Sandra Luzina
Quando Lia Rodrigues chega à varanda do seu apartamento, tem diante dos seus olhos o Corcovado, um dos símbolos do Rio de Janeiro. Com os seus braços abertos, a estátua de Cristo abençoa a cidade – a sua presença acompanha Lia diariamente .
Gávea é um dos melhores bairros do Rio. Os elegantes prédios de muitos andares estão cercados com uma vedação. Existem, evidentemente, os vigilantes que registam as idas e vindas dos moradores. Lia visita com frequência o Jardim Botânico, mesmo ao lado da sua casa. Aí, a vegetação é abundante e luxuosa.
Desde a sua casa no Sul da cidade, Lia põe-se todos os dias a caminho em direcção ao Norte. A sua meta é a Maré, uma das favelas do Rio que se estende entre as vias expresso Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida do Brasil. Há três anos que Lia Rodrigues mudou o seu espaço experimental para a Maré. - A favela não se situa algures na periferia, a favela está por tudo quanto é sítio – afirma a coreógrafa, expressando assim com grande precisão a consciência do meio artístico brasileiro. A favela, um lugar onde habita a violência, converte-se num lugar de criatividade e de resistência.
Percebemos imediatamente o momento em que transpomos a fronteira invisível que nos separa da Maré. Por baixo da auto-estrada, estendem-se filas e filas de carroças amolgadas, estripadas, tudo automóveis roubados. Estes carros de sucata formam uma linha de demarcação. O Jesus de “Art déco” – não aparece nestes lugares.
A partir desta linha passamos a andar mais devagar. Nas ruas existe uma quantidade de pequenas lombas. – É para travar a polícia – explica-nos a Lia. A polícia raras vezes se atreve a aparecer na favela. E quando vem, é com viaturas militares blindadas. E com presença policial, a violência sobe de tom. Na noite da estreia, ou antes do ensaio geral de “Incarnat” [na foto], o novo espectáculo de Lia Rodrigues, houve mais uma vez um morto nas ruas da Maré. A polícia tinha abatido a tiro um vendedor de droga. Mas a guerra continua, mesmo quando a polícia fica do lado de fora, – os bandos rivais de negociantes de droga nunca deixam de travar as suas lutas para controlar o seu território.
“Crossfire” (Fogo cruzado)
- É este o nome do lugar onde trabalho – diz a Lia – e não se trata de uma metáfora. A Casa da Cultura da Maré é uma casa aberta – o antigo armazém não tem portas. Antigamente concertavam-se barcos no grande hangar. Um empresário local ofereceu este edifício ao CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), uma organização com fins não lucrativos que, com os seus projectos de formação cultural, se tornou famosa nestes últimos oito anos. O CEASM fora fundado por habitantes deste bairro de lata que tinham conseguido dar o salto até à universidade e que agora reinvestem o seu saber na sua comunidade.
No pátio, trabalha-se afincadamente. O carpinteiro que ajudou a Lia com os trabalhos de renovação não tem mãos a medir para que, no dia seguinte, possa ter lugar a inauguração do Museu da Maré, um museu que tentará conservar a história da favela e dos seus habitantes. Juntaram-se numerosos documentos, numerosas fotos. O carpinteiro construiu maquetas de pequenas casas lacustres em madeira, outrora típicas desta região. Brilham nas cores turquesa e laranja. Para a inauguração, até se espera a presença do ministro da cultura, Gilberto Gil. O seu ministério concedeu subsídios para este primeiro museu de favela, fruto de uma iniciativa dos seus habitantes.
Só na Maré vivem cerca de 132.000 pessoas. Estima-se em 30% os habitantes do Rio de Janeiro que vivem em favelas. Estas favelas constituem uma “cidade dentro da cidade” e são em grande medida independentes da administração municipal oficial. Aqui aplicam-se as leis da favela – e quem manda são os líderes dos cartéis da droga.
Quando Lia Rodrigues resolveu mudar a sede da sua companhia para a favela, colocou os seus bailarinos perante uma decisão: seguir ou não a Lia até este lugar perigoso. A grande maioria seguiu-a, mas foi necessário muito trabalho para os convencer. Houve longas discussões à roda do facto de que o trabalho na Maré implicava um alto risco e da questão de saber qual era o sentido político desta mudança. Na prática, tudo isto significou que o seu trabalho iria sofrer uma enorme modificação. Todos tiveram que dar a sua ajuda para organizar o centro experimental. Removeram-se montanhas de lixo, colocou-se um novo piso, um coreógrafo amigo ofereceu o tapete de dança. Houve que concertar o telhado que deixava passar a chuva. Pintaram-se as paredes e também se instalou uma casa de banho. Ainda há muito que fazer. Mas tudo isto também é dança. Tudo faz parte da criação. - Toda esta experiência tem valor formativo – diz-nos a Lia.
Entretanto, a Companhia de Danças também conta, entre os seus membros, dois jovens bailarinos do próprio bairro: o Leo, um negro alto e delgado, tem 18 anos, o Alison, mais grave, tem 23. A Gabi colabora há pouco como estagiária. Estes três não enveredaram de uma forma privilegiada no caminho da arte, mas foram ajudados por uma das numerosas iniciativas sócio culturais existentes na Maré. Durante três anos, o coreógrafo Ivaldo Bertazzo, de São Paulo, ensinou jovens da favela a dançar – e o seu trabalho foi coroado de excelentes resultados. A Lia não apresenta os seus filhos do gueto como peças de circo. - Não quero voltar a discriminá-los. E como conseguir superar a lógica da exclusão social? – Desde o princípio, eu sabia perfeitamente que não podia ir simplesmente para a Maré para aí trabalhar com os filhos da favela. Isto seria equivalente a uma reprodução da divisão já existente. Nós vivemos em mundos separados, entre os quais não existe qualquer comunicação. Eu tento estabelecer o contacto entre essas duas esferas. O que importa é aprender lidar com esta diferença.
Numa favela aplicam-se as leis da favela. É preciso uma grande convicção para instalar aí uma companhia de bailado. Nem todos participaram nessa aventura.
Quem hoje em dia pretende produzir arte no Brasil, tem de investir continuamente – nas pessoas. O espectáculo “Incarnat” nasceu na Maré. Reflecte a violência que aí vive, mostra como ela se inscreve nos corpos. Inspirado no ensaio de Susan Sontag, “Diante da dor dos outros”, este espectáculo busca o potencial das imagens para chocar – e procura o momento da empatia. Lia Rodrigues confronta-nos brutalmente com as realidades do corpo – e aproxima-as fisicamente. Mas a sua arte não é arte de gueto. Quando os seus bailarinos dançam contra as circunstâncias, fazem-no com todas as liberdades. Este palco em que se dança a favela é também um lugar de fantasia. Durante aquela tarde, os bailarinos improvisaram pela primeira vez bailar com objectos de Tunga, um artista plástico, cuja obra já tinha estado presente na exposição de arte “documenta X” em Kassel. Uma bailarina finge que veste um par de asas, as outras experimentam com bandeiras de papel e objectos de madeira. O Leo traz uma rã viva – que também faz parte da exibição que deverá ter lugar no Jardim Botânico.
Lia Rodrigues observa os seus jovens bailarinos e exclama, sem quaisquer hesitações: - Olha, que não sou a madre Teresa da Maré, eu faço arte! Depois do ensaio, a Lia agarra numa vassoura e varre o chão da casa da dança - gosta de trabalhar, aprecia todas as formas de trabalho manual. Desempenha com extremo cuidado as tarefas do dia a dia , quase que como se meditasse sobre a perfeição.
Ao cair da noite, passeamos por uma rua animada da Maré. Aqui não se vêem barracas de lata, mas casas de pedra e cal, acanhadas e muito apertadas umas contra as outras. No Brasil, a pobreza tem muitos rostos. – Olha à tua volta! – exclama a Lia – O problema não é a gente!
Aqui a vida até parece normal. Os cheiros que nos sobem ao nariz parecem oriundos de um mercado africano. Por todos os lados ouve-se música, vendem-se CD’s em pequenos quiosques. E por todos os lados correm crianças, muitas delas vestindo as T-shirts amarelas dos futebolistas. Mal anoitece aparecem, saídos de todos os recantos, jovens adolescentes com a metralhadora às costas, os quais percorrem a rua principal em patrulhas de quatro. São os guardas do cartel de droga do sítio. Os transeuntes praticamente não lhes prestam atenção. Para eles, é um aspecto normal da vida nocturna. E agora surgem também os assistentes sociais do observatório da favela. Quando começa uma Semana do Cinema, reúnem-se todos nesta base de apoio centralizada. Entre as camisolas cor de laranja dos colaboradores do observatório mesclam-se T-shirts amarelas. São os activistas da AfroReggae, uma iniciativa que opera com sucesso em diversas cidades brasileiras e que se destina aos negros brasileiros. Um colaborador do observatório descreve o seu trabalho. Durante bastante tempo, tinham observado 200 crianças que trabalhavam como portadores de droga. Passado um ano, tinham morrido 70.
Esta noite decorre sem nada surgir de especial. Estão todos prontos, os gangs armados e os assistentes sociais. Ao sair da Maré, vimos um único carro da polícia. Está estacionado lá fora - os funcionários abriram as portas e contemplam a noite.
Com o seu “Incarnat”, Lia Rodrigues inaugurou o programa brasileiro de bailado no Festival In Transit na Casa das Culturas do Mundo em Berlim – este festival fez parte da Copa da Cultura organizada por ocasião do Mundial de Futebol. De entre os artistas convidados, Lia foi a única que se atreveu a criticar o programa. Um representante do ministério da cultura brasileiro perguntou-lhe então por que motivo ela participava nessa festival. - Trata-se da minha táctica de guerrilha – respondeu Lia. Depois da representação de “Incarnat”, confessa: - Libertei-me das emoções dolorosas e agora fiquei livre para outros projectos. Projectos que também terão lugar na Maré.
- O corpo não é estático – diz ela, - está em modificação permanente. Encontra-se num estado de troca contínua com o ambiente social e o ambiente cultural. Os livros que lês, aquilo que és, onde trabalhas, tudo isto são decisões de suma importância. Na evolução artística de Lia Rodrigues existe um ponto de viragem marcado pela descoberta da obra de Lygia Clark. Lia foi altamente influenciada pela sua ideia de um "corpo colectivo". E é exactamente isto que ela está a tentar na Maré: experimentar novas formas do conhecimento e construir um corpo colectivo através da arte. – Quando aqui chegámos – diz ela – não tínhamos modelo para o nosso trabalho. E de facto não existe modelo. É uma viagem a um mundo desconhecido. É o que o torna tão excitante.
Sandra Luzina
texto gentilmente cedido e publicado, em alemão, na revista Ballet -Tanz Julho 06
Tradução do alemão: Anneliese Mosch (com o patrocínio do Goethe Institut)
Agradecimentos: Goethe Institut (Merete Vargas, Dr. Ronald Grätz), Ballet-Tanz (Arnd Wesseman)
3 comentários:
E é à Maré que vai parar o vencedor dos "Encontros Imediatos"?
Força Julie, estamos contigo em espírito!!!
É sem dúvida um projecto/desafio/vida
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