crítica de teatro
Rhinocéros
de Eugène Ionesco
encenação de Emmanuel Demarcy-Mota/Comédie de Reims (França)
23º Festival de Almada
Teatro Nacional D. Maria II, 14 Julho, 21h30
A rinocerização já começou
Quando Rhinocéros (1958) de Eugène Ionesco estreou, encenado pelo alemão Karl-Heinz Stroux (1960), a metáfora era horrivelmente evidente. Pairava ainda no ar o fantasma do III Reich, a escalada de Hitler ao poder e tudo o que se lhe seguiu, o que para muitos não foi mais que o fim da Humanidade. Hoje, como aliás tudo o resto, o mundo é um pouco mais complicado. Há mais fanáticos, contudo divididos por mais fanatismos. Temos Haidders, Le Pens e afins, temos Blairs e Bushs, temos a globalização, Chiracs e Berlusconis, temos o medo e o Médio Oriente.
Em Rhinóceros, os habitantes de uma cidade aparentemente normal começam a transformar-se em rinocerontes como se de uma epidemia se tratasse. Os outros habitantes, se no início tentam reagir pela lógica, pela negação, pela tentativa de racionalizar o fenómeno, pela explicação dialéctica, depressa se deixam atrair pelo apelo da pele dura, da vida livre, da existência em manada, enfim, pelo fim do Homem e da Humanidade. Todos à excepção de Bérenger, o bêbado local, que acabará por se isolar em casa na esperança de não ser contaminado. Com a transformação de todos os outros, Bérenger reage ambiguamente: lamenta-se pela sua pele fraca e corpo feio; e exalta a sua condição de homem que jamais desistirá de o ser, o último homem livre.
No local confuso que é hoje a Europa, o encenador Emmanuel Demarcy Mota - que tem trabalhado com um dos mais estimulantes jovens dramaturgos franceses, Fabrice Melquiot - vai a Ionesco sublinhar que “há um monstro em cada um de nós, escondido sob o verniz da civilização e da educação”. Monstro esse que, ainda para Demarcy-Mota, “é ao mesmo tempo uma deformação do indivíduo e um espelho do mundo” (folha de sala do TNDMII). A “rinocerização” que se opera hoje é mais difícil de explicar. A que grande manada aderimos nós hoje? À do capitalismo? À do fanatismo religioso? À do individualismo? À do globalismo? O curioso é que nenhuma delas se parece materializar em nenhum grupo, e contudo, todas elas definem o nosso confuso mundo ocidental.
O espectáculo que Emmanuel Démarcy-Mota, traz a Lisboa, integrado no LisboaMite 06 e no 23º Festival de Almada, pela Comédie de Reims, não tem a sua pujança num comprometimento político nem social. Tal como Ionesco aquando da estreia francesa, poderia o encenador responder: “é uma tentativa de desmistificação e não a tentativa de substituir uma mistificação por outra mistificação” (apud A. Ribeiro dos Santos, “Aderir às massas ou ficar sozinho, Jornal LisboaMite 06, nº3, p.3). Faz da transformação dos humanos em rinocerontes uma questão mais individual e pragmática que social e metafísica.
Mas este espectáculo não vive só da gritante pertinência do teatro de Ionesco nos tempos modernos. Démarcy-Mota é um poeta que escreve com os corpos dos actores. Os actores jogam com coreografias, com gestos estilizados, com sequências rítmicas, com uma plasticização do quotidiano que lembra constantemente que estamos perante uma obra de arte. Esta formalidade, que lembra um criador como Patrice Chéreau, é consubstanciada no registo cinematográfico do espectáculo, reforçado por uma banda sonora que vai sublinhando, modelizando e apontando, ou pela repetição em coro de algumas frases-chave. Também o cenário (de Yves Collet), monumental e impositivo, contribui para esta formalidade. A utilização em dois andares descentra a acção e cria de uma maneira mais eficaz, a impressão da propagação da “epidemia”. Ao mesmo tempo, as mudanças de cenário - chão que sobe e desce, mudanças de perspectiva, derrube de paredes, aproximação ou afastamento de praticáveis – criam aos actores possibilidades de jogo próximas do vaudeville, do burlesco ou do teatro físico.
Não obstante a formalidade, Rhinocéros de Demarcy-Mota é um espectáculo intenso e que coloca questões demasiado inquietantes para que as esqueçamos tão depressa. Todo o espectáculo é marcado por um tom suplicante, trágico, negro, onde quase só se destaca o amarelo da camisa de Bérenger, que acabará por ser a última marca de humanidade num mundo cinzento de rinocerontes.
Rui Pina Coelho
1 comentário:
Mal o espectáculo acabou, o público espilrou das cadeiras aos pinotes e aplaudiu tão generosamente que até fez tremer os lustres do tecto! Que festa!
Só que uma resposta tão rápida e entusiástica a uma peça de Ionesco significa uma coisa: tudo aquilo já vinha mastigado, cheio de perguntas e respostas dadas. E se as respostas já estavam dadas, o teatro do absurdo, nem que caiam os candeeiros todos, catrapum, prefere ficar em casa de pantufas a ver televisão.
Francamente, não gostei deste espectáculo ou lá o que foi aquilo. É assim como que uma coisa de levar aos festivais, que fica sempre a condizer, e que se pode mostrar a qualquer ministro, que ele gosta com certeza. E depois?
Terá sido um Rinonceronte muito bem produzido, sem dúvida, mas isso também são as embalagens dos perfumes. Poesia? Disso só tinha a parte decorativa: umas coisas muito bem coreografadas, e assim a dar para o giro, o pessoal até se riu e tudo, eh, eh, eh. Mas a inquietação, o mistério, a dúvida, essas coisas, se eram para vir, não se notou. Sei lá, talvez até tenham apanhado Metro, mas sairam para aí em Alvalade; no Rossio nicles.
Depois do belo e sereníssimo «5 Heures du Matin», este Rinonceronte saiu-nos de peluche. Antes fosse uma vaca!
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