quinta-feira, junho 08, 2006

Abordagens ao Alkantara (IV): Who's afraid of representation?

Crítica de teatro

de Rabih Mroué (Líbano)
05 Junho, 21h00
sala a um terço

Re-apresentações

por Pedro Manuel

No registo do acontecimento performativo (artístico, ritual, social), a descrição é um dos estilos retóricos utilizados para testemunhar o acontecimento procurando assegurar a continuidade da mudança das formas. A ambição da descrição é, enquanto discurso histórico e criador de histórias(s), colocar-se a priori do acontecimento, direcccionando-o. Nesse sentido, o espectáculo de Rabih Mroué direcciona a descrição de performances num sentido político, em fogo cruzado com a história do Líbano, procurando reflectir sobre a condição do corpo e a sua representação num país dividido. Na segunda apresentação de um trabalho seu em Portugal (Biokraphia, apresentado em Serralves em Janeiro deste ano, também interpretado por Lina Saneh) Rabih Mroué dá continuidade à sua pesquisa sobre a presença do intérprete e a abordagem política e mediática da realidade libanesa

O espaço cénico é dividido em dois espaços de jogo. No primeiro, à direita, sobre uma mesa de café, a regra do jogo é a de uma mulher (Lina Saneh) que abre um grosso volume sobre body art e onde os artistas estão agrupados por páginas. Ela abre o livro, identifica o artista (Hermann Nitsch, Gina Pane, Chris Burden, Joseph Beuys, para citar alguns), identifica a página e o número da página determina o tempo disponível para a narração da descrição de uma performance do artista referido: página 14, 14 segundos; página 140, 140 segundos. Rabih Mroué cronometra este tempo sentado à mesa. Lina Saneh passa então ao segundo espaço.

Este segundo espaço é determinado pela ideia de representação que o espectáculo pretende tematizar. Dominado por um grande ecrã frontal, é utilizado como espaço de representação através da projecção vídeo de Lina Saneh, enquanto narra a descrição das performances. A sua imagem é captada em tempo real mas filmada por trás do ecrã. A inversão da projecção transforma o corpo real da intérprete em corpo virtual, em imagem, quando esta passa para trás do ecrã. À frente do ecrã fica o espaço de representação de Hassan Ma’moun, o libanês que assassinou oito colegas de trabalho, interpretado por Rabih Mroué.

Deste modo, a presença virtual de Lina Saneh, transformada em imagem, e a presença real de Rabih Mroué, transformado em personagem, separados pela película de projecção, estabelece dois níveis de representação: a criação de imagens através da descrição de performances por um corpo virtual; e a interpretação mínima, mas convencional, de uma personagem que oraliza o seu caso em discurso directo e exprime a tragédia das suas acções e a ironia do seu processo judicial. Neste eficaz dispositivo ilusionista assistimos também à divergência e confronto de dois tipos de discurso. Lina Saneh descreve performances de body art dos anos 60 e 70, re-apresenta-as pela descrição, narradas na primeira pessoa, mas misturadas com acontecimentos históricos do Líbano, sobretudo episódios da guerra civil. Assim, as performances parecem ter sido sempre realizadas por artistas libaneses, cruzando duas geografias, a do ocidente e a do médio-oriente. É nesse sentido que o discurso literal e confessional de Hassan Ma’moun interage ironicamente com o primeiro discurso, tornando-se provocador na medida em que sugere a possibilidade de uma analogia entre dois contextos distintos, as performances de body art e o crime cometido. Uma vez mais, encontramos aqui uma noção de representação através da ficção: sugestão de cruzamento entre a body art e a realidade libanesa; discurso pessoal de um homem que se tornou criminoso e das suas impressões e motivos.

O dispositivo cénico consegue elaborar uma noção de representação sem recurso a imagens e o discurso de Lina Saneh dá continuidade a essa elaboração. Limitando-se a descrever as performances mas localizando-as no Líbano, estabelecendo esse paralelo irónico, o seu discurso produz também uma reflexão sobre a História, contextualizando um acontecimento específico num acontecimento social. A descrição revela-se como retórica preferencial do discurso histórico, incluindo a efemeridade da performance nesse movimento. Mas se este tipo de discurso atinge um plano de teatralidade pela sugestão e pela ironia em torno da representação sem imagem, o mesmo não acontece com o discurso de Hassan Ma’moun que acaba por desequilibrar a continuidade do movimento irónico, concentrando-o na interpretação mais ou menos representativa de uma personagem. Esta representação fica deslocada do dispositivo e faz perder a força sugestiva em torno da violência latente de um país que, a pouco e pouco, se ia materializando. Rabih Mroué disse em entrevista [a publicar amanhã] que já não consegue acreditar na representação de personagens. Mas é a representação desta personagem, ainda que mínima, que compromete a ironia de toda a proposta. A alternância entre os dois discursos, os dois tipos de presença e os dois espaços de jogo cria um ritmo constante e previsível ao espectáculo, que não se ressente tanto disso como da progressiva concentração dramatúrgica sobre a história do assassino.

Hassan Ma’moun, cidadão libanês ou pária sem identidade? E do seu desejo por um Mercedes 500 fica apenas a carcaça de um Volkswagen carcomido, a imagem do espectáculo, talvez a representação de um Estado (de coisas).

4 comentários:

Anónimo disse...

hum... entendo mas, quanto a mim, a tentativa de "estabelecer esse paralelo irónico" esbarra, infelizmente, numa demagogia difícil de conter: o seu discurso, ao contextualizar um acontecimento específico num acontecimento social, como se diz, gera leituras (sobre a body art, que é o que aparentemente menos os preocupa) que me parecem demasiado tendenciosas para as conseguir comprar. É impressão minha ou torna-se imensamente fácil que tudo (a guerra, a história pessoal de um assassino e um movimento artístico complexo e transversal) seja misturado num cocktail de "sofrimento pronto-a-consumir"? Graças aos deuses que a contemporaneidade não se confunde com afirmar que tudo tem a ver com tudo.
E por falar nisso... Ironia mesmo é, ontem de manhã, ter viajado no mesmo voo para Paris com os libaneses Rabih e Lina...
beijos atenienses

vvoi disse...

- mg, discordo. a ideia parecia-me muito longe de um "cocktail" geral. pelo contrario, a ideia é muito simples e , o que é crucial, irónica: o UNICO contexto da body art é a história do libano. QUase como se fosse a única referência possível.
- pedro, não pensei na história da mercedes versus volkswagen. por outro lado, parece-me crucial mencionar que o volkswagen é ume referência explicita à uma performance de Chris Burden onde foi crucificado numa volkswagen. é o estado das coisas sim, coisas esquecidas, deixadas, não integradas na história. mas essas coisas, esse sofrimento não resolvido, é também a própria body art

vvoi disse...

O argumento do crime como obra de arte tem sido referido em vários contextos, muitas, muitas vezes. Frequentemente parece assim justificar as acções que sem a «etiqueta» de arte seriam moralmente condamnáveis.
No entanto, esse argumento presupõe um enunciado falso: que a obra de arte, seja ela de performance ou de outra natureza, é justificada por ser ela mesma. Como se a arte tivesse um poder metafísico, nomeadamente, o poder de ir além da ética/morale. No entanto, se pensaremos no assunto, tal não pode ser, e não é o caso. O artista continua a ter uma responsabilidade (vide «La responsabilite de l'artiste» de Jean Clair sobre a arte e os regimes totalitários). As suas acções continuam a existir no mesmo mundo que as outras, que escolhermos de não incluir na «arte». Assim, podemos, parece-me, facilmente incluir as acções do Hassan Ma'moun na área de performance. É só uma questão de enquadramento de referência, por assim dizer. No entanto, à afirmação da «nes» falta-me o elemento de julgamento moral.
E essa questão não me parece tão nova como se podia julgar: já o Aristotles (as chatas voltas aos clássicos) estava impressionado com a nossa capacidade de achar belo o terrível quando for colocado num contexto artístico (no caso dele, o palco). Mas será por isso que o assasínio da Antígona pode ser considerado justificado? Se for de facto efectuado em palco, participava ao mesmo tempo no nível estético e no moral. Assim, podíamos até achar bonito, o que de forma nenhuma nos impedia de um julgamento moral crítico.
(Essa perspectiva, ao meu ver, acaba de vez com a ideia platónica do Grande Trio: Beleza-Bondade-Verdade. Ainda hoje temos tendência a voltar aí, mas parece-me uma tendência algo perigosa.)

Anónimo disse...

Inês não te deixes apanhar pelas teias da 'mediocridade do pensamento'.
A ler (e é ler mesmo, não é citar nem ouvir falar de, embora ocupe muito tempo, claro está):

Sobre importância ou não da arte, da performance, da cultura, e de todos os movimentos: Steiner, Debord, Bourdieu, Eco, Godard, Deleuze, Broothaers, Castoriadis, Olga Pombo, Macluhan, Virilio + Baudrillard + Lyotard, Bragança de Miranda, de Koninck, Castoriadis, Silvina Rodrigues Lopes, Ortega y Gasset + Montaigne + Agostinho da Silva, Santo Agostinho, Goffman, Blumenberg, Rajchman, Augè, Osório Mateus, Sontag, Kerckhove, Derrida, Camille Paglia, e Maffesoli... Assim uns nomes que me vieram à cabeça. Faltam muitos muitos muitos. Mas depois de um vem outro e etc e tal.

Basta de compendios sobre arte.
Ou livros a sintetizar os grandes dos pequenos movimentos artísticos.
Basta de viver o sindrome do Art Now.
OU dos livros de Performance.

Porque temos de pensar no tempo. Temos de estar no tempo. E potencializar o nosso tempo. Perceber para onde se dirige o 'en-Masse' Whitmaniano e criar diferença como parte fundamental da dialéctica. (Ser, não de vanguarda mas, de retaguarda.)Basta de um mundo comandado pela mediocridade do pensamento.

Lembremos uma das frases de Hitler:
"É preciso pôr um ponto final ao que se chama instrução geral. A instrução geral é o veneno mais corrosivo e mais diluente que o liberalismo tem encontrado para a sua própria destruição... Consequentes connosco próprios, concederemos ao povo o benefício do analfabetismo!"

Inventemos novos passwords. Chega de pensar por autores sobreinterpretados, deslocados, desconstruídos. Chega de pensar como nos anos 80 ou nos anos 90 (por isso acho extremamente perigoso conferencias como a da RoseLee Goldberg).

Demora muito tempo, Vvoi, eu sei, mas havemos de lá chegar. Ou melhor, de cá chegar.