O último TANZKONGRESS tinha-se realizado ainda a Alemanha vivia sob os desígnios da República de Weimar. Na altura a coreógrafa Mary Wigman falava da necessidade de substituir as posições dos pés que o bailado clássico impunha por algo mais natural, mais orgânico. Arriscava colocá-los em paralelo, reclamando um lugar de destaque para a dança que servisse de referência às outras disciplinas, do teatro às artes plásticas. Quase setenta anos depois a Alemanha voltou a reunir coreógrafos, teóricos, intérpretes, críticos e público numa discussão sobre o lugar da dança na sociedade. Desta vez questionando o que é que a dança sabe que nós não sabemos ou já não nos lembramos.
Entre 20 e 23 de Abril, na Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo) em Berlim, 120 conferencistas e 1698 participantes dividiram-se entre 44 debates e 15 espectáculos sob o lema «Cultura em Movimento». Mas a realidade alemã é hoje bastante distante de uma cena fechada entre fronteiras.
Entre o star-system e o “monstro sagrado” (Pina Bausch, Susanne Linke, Sascha Waltz, Félix Ruckert, Raimund Hogue,…) à tentativa de auscultação de uma realidade presa a um sistema económico viciado e pouco disponível para os “verdadeiros independentes”, a cena contemporânea (e o termo contemporâneo foi por várias vezes estropiado durante os encontros) define-se mais pela pluralidade que pelo nacionalismo, palavra “proibida” na Alemanha. Será mais alemã a dança do americano William Forsythe, da húngara Eszter Salomon, do francês Xavier le Roy, da suíça Anna Huber, do brasileiro Bruno Beltrão, da portuguesa Ângela Guerreiro, entre muitos outros nomes “adoptados” pelo país? Estamos perante uma migração que deu à dança na Alemanha (não só à dança alemã) a dimensão universal e transversal que, no fundo, deve caracterizar cada gesto e cada movimento.
Falou-se, portanto, de experiências estéticas, de identidade e de reconhecimento de terrenos linguísticos e simbólicos comuns. E isso reflectiu-se nos espectáculos que completaram o extenso programa teórico. Jérôme Bel, Forsythe, Sascha Waltz, Salomon ou Jochen Roller apresentaram exercícios em torno da identificação do indivíduo: enquanto parte de um grupo (NNNN, Forsythe); num universo por ele criado que entretanto desmorona (Gezeiten , Waltz); em busca de uma ordem interior que confirme influências e as questione (Magyar Tàncok, Salomon); em confronto com uma imagem e os códigos interpretativos que esta sugere (Bel, com Pichet Klunchun & Myself, a apresentar em Lisboa no Alkantara festival, 11 e 12 de Junho) ou numa deriva urbana procurando “casa” (speed. neither/nor , Roller).
Os próprios encontros deram conta de uma necessidade de olhar a dança enquanto ponto de partida de diversas correntes de pensamento, à qual se colocam, de forma permanente, questões sobre a sociedade. Mesmo que – e nunca pondo em causa a validade da organização, dada a relevância do encontro, assombrado ainda pela manipulação que o regime nazi fez dos anteriores congressos -, houvesse quem apontasse o dedo à dimensão formal, académica, burguesa e elitista (pela ausência das minorias étnicas ou deficientes, por exemplo) do congresso. No fundo, o eterno duelo entre a prática e a reflexão. Os primeiros a exigirem que num congresso sobre dança se dance mais, os segundos a acusar a falta de tempo e a multiplicidade de questões debatidas.
Reunindo nomes fundamentais para a compreensão teórica do movimento como Erika Fischer-Lichte, André Lepecki, Pierre-Michel Menger, Cornélia Dümcke, Irit Rogoff ou Helmut Ploebst (cujos textos facilmente se encontram na Internet) havia que definir o que se vê quando se olha para a dança. Importou focar a discussão nos processos de criação, no conhecimento do corpo, das técnicas de salvaguarda física desse corpo, no multiculturalismo, na transferência de saberes, no problema das transições de carreira, na relação com o público ou no papel da crítica e da programação. Mas também na dimensão trágica do movimento, na importância do «vazio», no preconceito enquanto experiência estética, na necessidade de derivação de «obra» para evento, e no fim da convenção e classificação em nome de uma «criticalidade», termo mutante aplicado pela investigadora Irit Rogoff, no qual o sujeito (espectáculo, intérprete, observador) habita a crítica, é a crítica.
Razão pela qual o congresso abriu com uma performance chamada Mercado Negro na qual, por um euro e durante meia hora, cada espectador podia escolher a personalidade com a qual queria dialogar. Uma massa imensa de pensamento que era também uma coreografia, provando que o pensamento não enquista a acção. Ou seja, uma tentativa de contrariar a fábula de Paul Valery, na qual uma centopeia se deixou ficar sentada no passeio e nunca mais andou, depois de lhe terem perguntado como era capaz de coordenar todas as patas.
Texto escrito com o apoio do Fundo Roberto Cimetta
2 comentários:
então e o Público?...pensava que era lá que ia ler este texto. Não sabel eles o que perdem...;)
Isso não sabe o país todo o que anda a perder.
Enviar um comentário