sábado, maio 06, 2006

Maratona da Dança 2006: relatório

O texto que se segue foi escrito a convite da REDE - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea e da Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas que, em conjunto, organizaram o fim-de-semana passado a Maratona para a Dança 2006. Na qualidade de observador propuseram-me que escrevesse dois textos: um para a imprensa (o que se segue) e um outro mais alargado, de circulação interna (em preparação). O texto é assinado por mim e pelas direcções da REDE e da Plateia, tendo sido distribuído pela comunicação social.

Maratona da Dança 2006: notas

Para a REDE e a Plateia, a Maratona da Dança, que decorreu no passado fim de semana no Porto e em Lisboa, serviu como oportunidade para reflectir sobre o que se faz e como se faz. A manifestação, que pela primeira vez incluiu o Porto - por onde passaram cerca de 300 espectadores para um total de 21 performances -, foi acompanhada por um amplo programa de debates dedicados à criação, estatuto do artista e descentralização, num diálogo que se quis aberto, responsável, capaz de levantar questões e discutir o essencial, na teoria e na prática.

Estiveram presentes coreógrafos, bailarinos, programadores e sindicatos (STE e SIARTE) mas, inexplicavelmente estiveram ausentes os responsáveis políticos. Só a Delegada Regional do Norte (no Porto) e o sub-director do Instituto das Artes, Orlando Farinha (em Lisboa), compareceram. O não comparecimento dos partidos políticos ou de um representante do Ministério da Cultura (todos convidados para estes encontros) denuncia, no entender das estruturas organizadoras, um fechamento à comunidade, ao mesmo tempo que potencia o equívoco e a ambiguidade.

No comunicado incluído no programa do evento é clara essa dificuldade: “perante a indefinição e desarticulação da política cultural para o sector da criação contemporânea, a criação/extinção de organismos e institutos, a alternância constante de interlocutores, é impossível alcançar condições mais estáveis para o desenvolvimento da actividade”.

No Porto, o debate moderado pela jornalista Inês Nadais tratou dos processos de criação dos coreógrafos que se apresentaram na Maratona da Dança. A oportunidade de confronto entre diversos métodos, permitiu que:

- se salientasse a relevância da experimentação/investigação artística, que carece de reconhecimento como trabalho primordial para a criação contemporânea;

- a tomada de consciência de que a investigação/experimentação científica sobre os processos da criação contemporânea, que reflectem a diversidade da dança nacional - uma característica e não um handicap -, são matéria fundamental para a criação.

Como se escreveu no comunicado já referido, “esta dança plural, heterogénea e eclética, que existe numa variedade de escalas, de meios de difusão e distribuição, que valoriza o processo criativo, que, em muitos casos, existe enquanto um fazer contínuo que não se esgota num único objecto”. Foi disso exemplo o trabalho efectuado pelo GIEPAC (Grupo Informal de Encontro, Pesquisa e Análise Coreográfica), coordenado por Vera Mantero e com a colaboração de outros coreógrafos e pensadores. A suspensão recente do projecto serviu de repto para a organização de umas jornadas de reflexão sobre os processos criativos e a pertinência da criação contemporânea, a organizar em Outubro, pela REDE e pela Plateia.

Quanto às apresentações, o cruzamento geracional permitiu confrontar propostas de nomes que já se inscreveram na história recente da dança, como o caso de Vera Mantero, Joana Providência ou Isabel Barros, com outros nomes que procuram nesta prática novas formas para interpretar o gesto coreográfico, como João Costa, Victor Hugo Pontes ou Maria João Garcia.

Em Lisboa o programa, ao qual se associou o Teatro Camões, dividiu-se em dois painéis, moderados por Maria José Oliveira dedicados, respectivamente ao estatuto do profissional do espectáculo e à descentralização.

Quanto ao debate “O estatuto do profissional do espectáculo”, ao contributo de membros da REDE (Fórum Dança e CEM) e da PLATEIA a par da Comissão de Trabalhadores da CNB e dos sindicatos STE e SIARTE, juntou-se a opinião de Luís Gonçalves da Silva, membro da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e coordenador de um relatório encomendado pelo XVI Governo Constitucional sobre a Reforma Laboral dos Profissionais do Espectáculo. Dos pontos fortes desse debate destacam-se:

- Que um estatuto terá de abranger todos os profissionais envolvidos nos processos de criação e produção das artes do espectáculo, justificando assim uma acção do governo, e justificada esta opção pela similitude dos processos de produção;

- Que se deve proceder à elaboração de proposta para Estatuto Sócio-Profissional a recensear no âmbito de cada uma das associações/sindicatos do sector formando seguidamente uma comissão colegial de trabalho (constituída por um representante de cada uma das estruturas) com mandato/procuração para negociação com a tutela, por tempo limitado;

- Que a contínua realização de relatórios e propostas de alteração de lei não deve prosseguir sem que os criadores e estruturas disso tenham conhecimento.

Importa ainda apontar algumas questões suscitadas pela discussão:

- Quanto custará ao Estado a ilegalidade corrente no sector, nomeadamente em termos de segurança social, por ausência de uma legislação específica?

- Que imagem pública está o país a criar quando utiliza a dança e as artes cénicas em geral, como manifestação cultural mas não lhe reconhece direitos estatutários nem regula a certificação dos profissionais destas áreas?

No caso do debate “A descentralização cultural e a dança”, contou-se com a presença do sub-director do Instituto das Artes, Orlando Farinha, bem como de representantes de estruturas descentralizadas: CENTA (Vila Velha de Ródão), Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo) e Teatro Municipal da Guarda. É de salientar ainda a presença na plateia de alguns programadores (Gil Mendo, Maria de Assis, Francisco Motta Veiga), bem como de Paulo Carretas, responsável, no Instituto das Artes, pelo projecto Território Artes, apresentado como a “2ª geração” do programa “Difusão” iniciado em 1999 e interrompido em 2002. A discussão dividiu-se entre difusão das obras e multiplicação de sedes de criação/produção e sua distribuição no território nacional. Importa destacar que:

- reconheceu-se a importância de generalizar a educação artística prevista no programa de governo, bem como a vontade de desenvolver um trabalho de proximidade com as populações. Nomeadamente complementando o trabalho dos agentes culturais existentes no terreno e com trabalho efectuado, em vez de os substituir ou sobrepor;

- reconheceu-se a importância haver estruturas que articulem/coordenem as dinâmicas a nível municipal, distrital e regional, nomeadamente reforçando as valências das Delegações Regionais de Cultura que deveriam poder fornecer acompanhamento técnico na sua região;

- Chamou-se a atenção para a necessidade (do estado?) promover debates sobre as políticas culturais no sentido dos autarcas adquirirem referências que lhes permitam problematizar a gestão dos equipamentos que tutelam;

- Questionou-se o funcionamento actual da rede de cine-teatros, muitos sem normas de funcionamento e recursos humanos qualificados, em contraste com o bom exemplo da rede de bibliotecas públicas. Estes Teatros, com métodos de programação e produção acautelados, foram considerados como pólos dinamizadores e despoletadores de criação local e de pólos de programação de menor dimensão dentro do raio de influência de proximidade. Assim, considerou-se prudente, principalmente no actual quadro de austeridade financeira, investir numa rede funcional efectiva dos teatros de capitais de distrito.

- Foi considerada grave e prova da falta de ordenamento do território cultural nacional a falta de investimento na dinamização cultural da Área Metropolitana do Porto e da sua cidade-centro em particular. À imagem do que se faz com Lisboa, a administração central deveria subtrair a dinamização cultural do Porto – onde existem recursos humanos qualificados e equipamentos culturais diversificados em número e qualidade no domínio das artes cénicas – à arbitrariedade do poder local. Só assim se poderá reduzir a distância que qualquer tem de percorrer para ter acesso a oferta cultural diversificada em termos de arte contemporânea, que é essencialmente urbana.

Os encontros entre os profissionais reuniram cerca de uma centena de participantes, dando oportunidade a que fossem questionadas não só determinadas opções políticas, mas também perceber de que forma os agentes culturais contribuem para o estado das coisas. A razão fundamental destes encontros justificou-se assim no modo como criadores e outros agentes culturais (programadores, directores de estruturas, etc.) se viram confrontados com práticas nem sempre auxiliadoras de uma evolução. A responsabilização política dos agentes culturais (para a qual a REDE e a Plateia têm continuamente trabalhado) torna-se mais do que essencial quando o discurso político se ausenta do diálogo. Há uma clara vontade de dialogar, pensar em conjunto, trabalhar em nome de objectivos concretos. Há mudanças que afectam a vida das pessoas que, apesar de fazerem o que gostam, se forçam a condições por vezes primárias para o fazer. Nada disto é discurso vitimizador, mas apenas “a prova da disponibilidade crítica e reflexo da necessidade de uma articulação conjunta e permanente entre profissionais, comunidade e poder político”.

Tiago Bartolomeu Costa, crítico. Observador da Maratona da Dança 2006
REDE - Associação de Estruturas para a dança Contemporânea
Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas