terça-feira, abril 11, 2006

O inominável peso de ser

Crítica a Todos os que Caem e A Colher de Samuel Becket
Teatro da Comuna
Encenação de João Mota

A Comuna celebrou o centenário do nascimento de Samuel Beckett com dois espectáculos que apresentaram lugares menos conhecidos da sua obra dramática. Em Todos os que caem (All that fall, 1957) adapta-se uma peça escrita para rádio e em A colher de Samuel Beckett (2002), o texto de Gonçalo M. Tavares recupera a cadência normativa de alguns dos últimos trabalhos do dramaturgo irlandês.

1 – Todos os que caem

Há cerca de um ano, a Cornucópia adaptou uma peça para rádio de Edward Bond, A cadeira, apresentando-a numa interessante sobreposição de linguagens artísticas. A peça para rádio, que implica mecanismos próprios, era encenada para o palco através de uma linguagem cinematográfica recorrendo, por exemplo, a uma moldura que perspectivava as figuras em cena. Em Todos os que caem, a transposição das especificidades de uma peça escrita para ser ouvida são realizadas indo ao encontro dessas particularidades e assumindo a sua performatividade. Por um lado, a primeira presença em cena é a de um rádio antigo, colocando desde logo a relação na perspectiva de um imaginário de teatro radiofónico. Alinhados em duas filas paralelas a uma cena central - como os músicos no bunraku japonês -, iluminada e coberta de gravilha, os actores - sempre presentes em cena - interpretam os sons indicados no texto através dos artifícios que eram usados em rádio: cascas de caracóis, batedeiras, sons de animais, copos, sacos de plástico.

Por outro lado, a relação entre palco e plateia é mediada através de um obstáculo, uma tela translúcida que coloca a presença dos actores num plano etéreo, enublado, onírico – reforçado pelo desenho de luz - acabando por funcionar como superfície criadora de imagens. Ou seja, em paralelo com a moldura da montagem de outra peça para rádio, também aqui se recorre à tela como artifício que crie um distanciamento próprio à criação de imagens. A estratégia liga-se à especificidade do teatro radiofónico na medida em que, neste caso, tanto o texto como a ambiência sonora devem contribuir para uma sugestão de acontecimentos, não pela sua descrição, mas por imagens, por imaginação.

Deste modo, através da presença constante dos actores e dos sons realizados ao vivo, similares a sons naturais, e através da disposição de uma cena central, vista através de uma tela, cria-se um dispositivo cénico, pleno de teatralidade, que abre um espaço de simulação adequado à exposição das figuras excêntricas de Beckett, caracterizadas pelo exagero (por exemplo, de peso) e pela falta (por exemplo, de visão).

È nesse sentido que a direcção de actores sublinha a expressividade grotesca e mimada, próxima do imaginário do próprio Beckett em relação às suas personagens, entre o clown e o actor de cinema mudo (Buster Keaton em Film). Note-se, por exemplo, a maquilhagem expressionista que carrega os traços do rosto dos actores, envelhecendo-os, mas jogando em contraponto com a gestualidade artificial, a mímica, conferindo-lhes uma presença irreal, mas dinâmica. Só é pena que ao longo do espectáculo este rigor de interpretação se tenha desvanecido, começando pelo registo vocal, não tão marcado como o físico.

Mrs Rooney é uma velha senhora, presa no seu próprio peso, que caminha com dificuldade, arrastando os pés pelo chão na direcção da estação de comboios, onde irá buscar Mr Rooney, o seu marido, cego e amargo, voltando ambos para casa. O texto pode dividir-se nos três momentos de um movimento pendular, a ida para a estação, o encontro com o marido (porque a perspectiva dominante é a de Mrs Rooney), e o regresso. Como Stefan-Brook Grant refere no seu artigo, a ida para a estação é marcada por toda uma série de crescendos: passagem em crescendo de sons rurais para sons urbanos, crescendo das máquinas (uma bicicleta, um carro, um comboio), crescendo emocional (repetidamente, a memória de uma filha morta alarga-se a todas as crianças, contrastando com a poderosa atracção da velhice pela morte). O regresso solitário do casal é marcado, não só pelo incidente da viagem de Mr Rooney – e que é mais do que um incidente que lhe seja alheio – mas pela análise de uma série de temas que serão recorrentes na escrita de Beckett: a condição humana e a sua inadequação em relação ao mundo, no ponto em que a linguagem abdica, o inominável. (de onde surge a ideia de absurdo). O caminho rural torna-se uma via sacra, mas sem o movimento de expiação.

A encenação de Todos os que caem resulta numa apropriação justa dos pressupostos imagéticos e temáticos de Beckett, com um dispositivo cénico eficaz e uma boa direcção de actores. Mas aquilo que é uma mais valia na interpretação do texto poderia constituir uma proposta mais arrojada a partir das especificidades que se impõem a uma adaptação de uma peça escrita para rádio, de que a execução dos sons foi um solução sugestiva, próxima de uma performatividade ambígua. Apesar de o espectáculo ser intenso, até ao fim, ficamos com a sensação de que tudo é lógico e, a certo ponto, algo previsível.

(Cfr. excelente artigo de Armando Nascimento Rosa sobre Todos os que caem)

2 – A colher de Samuel Beckett

Previsibilidade é o que encontramos também em A colher de Samuel Beckett. Mas se em Todos os que caem é uma sensação ténue, aqui o apriorismo das causas impõe-se de duas formas: primeiro pelo rigor e extensão da descrição didascálica, presente no espectáculo pela sua execução; depois, pelo valor da previsibilidade na tematização do espaço, da linguagem e da existência.

Gonçalo M. Tavares referiu que este era o texto onde sentia mais teatralidade de todos aqueles que compunham a edição de textos de teatro. Esta teatralidade parece estar intuída na inversão, simples, de que a arquitectura é pensada em função dos corpos, que uma das suas funções é facilitar o acesso aos outros espaços e aos objectos. Deste modo, o isolamento de alguns objectos no cimo de escadas agudiza a sua necessidade pelo esforço que implica o acesso. A esta inversão da lógica espacial junta-se uma dinâmica ritual no acesso, ao subir as escadas, descalçar os sapatos e as meias, dificultando ainda mais uma completa projecção do corpo no espaço, e do sujeito sobre o seu território. A individualidade tende a fragmentar-se, o espaço prepara o indivíduo/personagem à dispersão e ao isolamento.

Ao nível da escrita, estes pressupostos são corporizados numa escrita errante, de avanços e recuos, reticências e cortes, raciocínios e derivas, dominada pelo corpo e pela vontade de afirmação, pela vontade de poder. O texto de Gonçalo M. Tavares recupera a cadência normativa de trabalhos como Stirrings still (1983) e Worstward ho (1984), derradeiros trabalhos de Beckett que, em paralelo com filmes de peças curtas (Eh Joe, Footfalls, Rockaby), anunciam uma visão – uma perspectiva – sobre a existência que se (dez)organiza ao nível linguístico por um novo discurso, uma forma nova, diferente da estrutura literária dramática de En attendant Godot ou ainda Fin de Partie. No texto de Gonçalo M. Tavares a personagem/ o corpo/ a voz exprime a mesma inadequação, o mesmo absurdo, através do recurso conhecido: a falta. Deste modo, o problema parece apoiar-se na falta de uma colher, mas é também a espera do escritor que não chega. A mesa está posta para dois, a personagem e o escritor, mas o escritor não chega. A colher sinaliza essa ausência, a de Beckett ou a do próprio Gonçalo M. Tavares. A personagem alterna então entre dois registos, as histórias dispersas que um escritor pode acumular no seu caderno, aguardando sentido; e o discurso da própria personagem, intenso e contínuo, também procurando ordem e sentido: «a matemática ou se vê no corpo ou nada». A encenação da desmedida orienta-se nesta falta em relação à completude e identidade da posse, à inadequação do discurso às possibilidades reais, ao corpo em relação ao espaço e aos objectos. Daí o valor da previsibilidade, como garante de causalidade e ordem. Algo que a inversão da função da arquitectura não permitirá.

Num espaço cénico dominado pelas escadas sobre um tapete de folhas secas, o actor (Álvaro Correia) percorre a pauta de didascálias, cumpre o ritual, opondo a rigidez dos actos, a sua necessidade, ao pensamento flutuante, associativo. Desta diferença entre necessidades e possibilidades, entre concreto e discurso, resulta o contraste que marca o ritmo do espectáculo, e que se materializa também entre o alto e o baixo, entre o repouso sobre os patamares e o movimento contínuo em baixo, ou pela corda que prende o pescoço do actor e não o deixa chegar completamente ao chão - o chão é o próprio caminho, o espaço de passagem (a corda é segura por um técnico encoberto lembrando, de novo, o bunraku japonês). Neste contraponto, a encenação faz evoluir uma progressão, um crescendo de intensidade nos pensamentos, marcado pela voz e pela enunciação. Esta progressão privilegia o discurso ao ritual, concentrando a acção no pensamento e não tanto na relação entre aquele corpo e o espaço desestruturado. Por exemplo, ao substituir “o sal ou pequenas pedras brancas” que deviam cobrir o chão por folhas secas, perde-se uma relação sonora, visual e cromática que permitiria ouvir e ver a personagem mover-se sob um fundo movediço e associar uma continuidade entre o chão branco e os sapatos e calças brancas, localizando o chão como o território daquele corpo, precisamente o espaço do esforço.

O espectáculo acompanha o texto de perto, fá-lo acontecer quase como foi escrito. O que é correcto, uma vez que a extrema proximidade do texto à cena – pelas didascálias, por exemplo - sugere uma transposição literal. Mas essa passagem não explora as possibilidades de uma dramaturgia das inadequações: «se a arquitectura dificultasse em vez de facilitar». Esta outra dinâmica acaba por vir à superfície no processo, aparecendo em cena na movimentação entre escadas, quando o caminho seguido não é o mais curto mas um outro percurso pelo espaço, mais longo.

Assim, um pouco como em Todos os que caem, a transposição é correcta, atenta e criativa, mas perante as possibilidades dramatúrgicas que os textos oferecem, ficamos com a sensação de que algo mais poderá ainda ser feito na cena. Não obstante, tal como foi dito ao início, a escolha destes dois textos, em paralelo, revela uma vontade de abordar zonas que a escrita de Beckett deixa em aberto, como a transposição de linguagens artísticas e a definitiva crise da linguagem como projecção ontológica, apresentando a referência e a influência.


Pedro Manuel

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