SOBRE A CRÍTICA DA ORIGINALIDADE
por Rogério Nuno Costa
ler 1ª parte
NOTA CINCO
narrativa
Passemos ao cliché do discurso. Thierry de Duve usa uma imagem muito interessante para definir a condição pós-moderna: imagine-se uma “maionese modernista” posta à prova por um crítico formalista de culinária; ele acha a maionese detestável, mas não consegue parar de a julgar. A maionese está feita de uma maneira tal, que qualquer coisa dos ingredientes puros que dela fazem parte aparecem no resultado final. A maionese ousa apresentar-se ao paladar exigente do crítico mostrando separadamente todos os seus componentes, tomando por matéria sua a própria “convenção da maionese”, e reclamando um qualquer título de maionese “auto-referencial” (uma “maionese sobre maionese”), ou seja, uma crítica à maionese feita através dos componentes da própria maionese, não para a subverter, mas para a entroncar de maneira ainda mais firme na sua área de competência. Crítico que se proponha a analisar o espectáculo EUROVISION tem, assim, mais de metade do trabalho feito. Cliché ao lado: a obra de arte não é um valor estético a preservar, nem tão pouco um artigo de decoração, mas antes um signo, totalmente livre, uno e incomensurável. O convite à liberdade endereçado por Nietzsche nem sempre se deu bem com a necessidade cientifista do controle e da intervenção da consciência na arte. A arte, porque pertence ao inconsciente, deverá estar centrada no sujeito criador; mas este, turvado por uma consciência historicista, pelo imperativo da originalidade, cessa de ser um “génio”, um criador inconsciente e livre. A exigência de originalidade obriga-o a integrar na obra uma reflexão sobre a tradição, que faz com que a consciência ultrapasse a inconsciência. Como a repetição é a falta de gosto por excelência, o artista que deseja quebrar com as regras e as obrigações vê-se obrigado a respeitar uma regra ainda mais limitadora – aquela que respeita à sua própria consciência histórica. As vanguardas, ao nascerem, já tinham assinada a sua certidão de óbito. Possibilidade de ligação dos dois clichés, qual “maionese modernista”: não é possivelmente Salieri quem mata Mozart. “Um padrão de que me apercebi foi, numa parte cómica, justamente quando todos não aguentavam rir, surge uma parte séria, à qual, quando estamos quase a dormir, dá aos actores algo similar a um ataque de esquizofrenia” (Fábio Fontes, Torres Vedras). A pós-modernidade é um “fenómeno de conflito” (Luc Ferry), um conflito de si para consigo (maionese envenenada por si própria), que resolve a sua condenação encarando um sempre latente “retorno à tradição” contra o modernismo, até mesmo pela possível auto-destruição dialéctica do vanguardismo em prol de um “novo academismo”, que se evidencia através da recorrência ao eclectismo. Por exemplo. EUROVISION, assim como assim, é um espectáculo incrivelmente tradicional.
ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)
NOTA SEIS
festival
Para Duchamp (que é só o homem mais inteligente do século e o único que rebentou literalmente com quatrocentos anos de humanismo), a verdadeira obra de arte é aquela capaz de chocar. Para a Laurie Anderson, os terroristas são os verdadeiros artistas, pois são os únicos a poder mudar seja o que for. Para o Warhol, não existe futuro. Para o Nuno João Mota Santos Fino, de Torres Vedras, “agora já não há muitas coisas a fazer e por isso tem que se recorrer às coisas já existentes, acrescentando alguns elementos, criando arte nova”. Para a Peaches, I don’t have to make the choice. Utilizando a terminologia de Giulio C. Argan, o que é que EUROVISION tem de “exemplar”? No Festival da Canção, nos Jogos Olímpicos de Inverno, na Miss Universo, na Cerimónia dos Óscares, nos Jogos sem Fronteiras, nos Encontros de Comedores de Ovos Crus da Nova Zelândia ou nos Encontros Acarte temos sempre duas coisas: as mensagens de paz no mundo, de fair play e de camaradagem, transmitidas massivamente para a aldeia global via satélite, e os podres dos bastidores. EUROVISION é sobre os podres dos bastidores. Lógica desconstruída/destruída pelos próprios mecanismos da lógica (Kant). Maionese auto-referencial (De Duve). Homem-bomba (Nuno Costa). É esse o seu exemplo. É essa a crítica que faz à (sua) originalidade.
ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)
NOTA SETE
aula
A arte pós-moderna (esse “grande tédio”, como diria o Steiner) é também, e portanto, uma arte “posta à prova”. Não um festival, mas um tribunal. Um ajuste de contas. Cínico e desencantado. Como em EUROVISION. A arte é uma fraude. A história é uma fraude. Há que encontrar os culpados. Vivos (Hirschhorn) ou mortos (Duchamp). O que é que isto quer dizer? Não sei. Chegou a hora da votação final:
“Na parte onde Martim Pedroso começa, literalmente, a lamber uma bicicleta de forma deliberada, como se não houvesse amanhã, é aí demonstrada uma grande provocação...” (Nuno João Mota Santos Fino, Torres Vedras, douze points). “Foi, sem sombra de dúvida, algo diferente e inspirador, na medida em que reflecte com ironia uma sociedade que caminha em direcção a algo que nem as próprias pessoas sabem bem o quê” (Nuno Ricardo Batista, Torres Vedras, huit points). “Verdadeiramente e bem apelidado de espectáculo” (Liliana Silva, Torres Vedras, cinq points). “Espectáculo-parasita” (Eduarda Filipa Figueiredo, Caldas da Rainha, quatre points). “A parte de alguém estar a lamber uma bicicleta, velha e cheia de ferrugem, deu-me uma beca de nojo” (João Pedro Santos Pereira, Torres Vedras, six points). “De forma directa e indirecta, a ‘Praga’ vai atacando” (Noé Alves, Caldas da Rainha, sept points). “Para mim, eles trataram a Europa como um novelo de lã, que se vai desenrolando (futuro) e enrolando (passado)” (Ana Sofia Avelar Lopes, Torres Vedras, dix points). “Torna-se ridículo aceitar o pré-concebido; pergunto eu: como era antes de ter surgido esse pré-concebido, essa máquina instalada?” (Noé Alves, Caldas da Rainha, sept points). “Por um lado, o crítico mata o actor. Por outro lado, o actor não vive sem o crítico” (Ana Rebeca Stringräber, Caldas da Rainha, trois points). “Gostei da dança à esquimó, principalmente da bola de espelhos, representando muito bem a imitação crítica de uma parte do nosso ego patriota” (Miguel Cosme Ramos, Torres Vedras, douze points). “Sem ironia não há alegria, não há entusiasmo e auto-reflexão; sem auto-reflexão não há evolução” (Ana Rebeca Stringräber, Caldas da Rainha, dix points). “O que me foi mostrado no espectáculo, e recebido na aula, lembra-me um pouco as minhas aulas de improviso jazz” (Joana Gonçalves, Caldas da Rainha, cinq points). “Hoje há uma tendência brutal para comparar tudo” (Bárbara Cardoso, Caldas da Rainha, cinq points). “Todos nós carregamos uma mochila com algumas pedras” (Joana Gonçalves, Caldas da Rainha, huit points). “A paródia está presente e o bem-estar também” (José Pedro Simões Pinto, Torres Vedras, quatre points). “A vossa ironia é demasiado criativa, demasiado mesmo. Mas em vez das t.A.T.u. deviam ter pegado nos oZone” (Rui do Rosário Ribeiro, Torres Vedras, deux points). “Adorei” (Jessica Portela, Torres Vedras, un point).
E a melhor síntese de todas (Prémio da Crítica 2005) vai para a Maria Luís Brás Gonçalves (Torres Vedras): “O espectáculo EUROVISION utiliza elementos sérios da nossa sociedade, conhecimento profundo da história do passado e reorganiza esses elementos dispersos, aparentemente sem ligação, com um propósito integrante: fazer uma obra de arte total (gesamtkunstwerk), no presente.”
E uma muito merecida Menção Honrosa para o Luís Miguel Gonçalves (Caldas da Rainha): “Todo o espectáculo assenta numa lógica de desconstrução de vários ‘pré-conceitos’ europeus, que são muitas das vezes limitadores do real. Por estes factores, de exposição provocatória e irónica da nossa realidade, este espectáculo é necessário”.
O Prémio do Público, a existir, iria sem dúvida para a Bruna Oliveira (Caldas da Rainha): “O espectáculo apela sobretudo a uma consciencialização de que a população portuguesa estagnou no tempo. Não evoluiu nos últimos anos, não perspectivou nada para o futuro, não fez planos para uma melhoria, não alcançou objectivos”.
desenho feito por aluno de Torres Vedras na folha de exame
NOTA OITO
fim
Fiquei com vontade de um dia editar um livro de bolso, escrito em linguagem corrente, intitulado “10 exercícios básicos para pensar como deve (de) ser”, distribuído por tudo quanto é loja de conveniência e estação de serviço. “Every day our cause becomes clearer and people get smarter” (Dietzgen).
exame dos alunos da Escola Secundária Henriques Nogueira (Torres Vedras), no espaço T0/Transforma (fotografias: Rogério Nuno Costa)
Referências directas:
- ARGAN, Giulio Carlo. “Arte Moderna. Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos”, Schwarcz, S. Paulo, 1998.
- BARTH, John. “The Sot-Weed Factor”, Doubleday, New York, 1960 (citado por Linda Hutcheon).
- BENJAMIN, Walter. “Theses on the Philosophy of History”, documento retirado da Internet: http://www.tasc.ac.uk/depart/media/staff/ls/WBenjamin/CONCEPT2.html
- CHOAY, Françoise. “A Regra e o Modelo”, Perspectiva, S. Paulo, 1980.
- CHRISTOFF, Liliane. “Intertextualidade e Plágio. Questões de Linguagem e Autoria”, IEL/Unicamp (tese de doutoramento), Campinas, 1996.
- DE DUVE, Thierry. “Kant After Duchamp”, The MIT Press, New York, 1998.
- DIETZGEN, Wilhelm. (na verdade, Joseph...), “Die Religion der Sozialdemokratie” (citado por Walter Benjamin).
- FERRY, Luc. “Homo Aestheticus. L’Invention du Goût à l’Âge Démocratique”, Grasset, Paris, 1990.
- FRANÇA, José-Augusto. “História da Arte Ocidental. 1780-1980”, Livros Horizonte, Lisboa, 1987.
- HARRISON, Charles & WOOD, Paul (ed.), “Art in Theory. 1900-2000”, Blackwell Publishing, 2003.
- HOBSBAWM, Eric. “Behind the Times: the Decline and Fall of the Twentieth-Century Avant-Gardes”, Thames & Hudson, London, 1999.
- HUTCHEON, Linda. “Uma Teoria da Paródia”, Edições 70, Lisboa, 1985.
- MORA, Carlos de Miguel (coord.), “Sátira, Paródia e Caricatura: da Antiguidade aos Nossos Dias”, Universidade de Aveiro, 2003.
- STEINER, George “No Castelo do Barba Azul – algumas notas para a redefinição da cultura”, Relógio d’Água, Lisboa, 1992.
ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)
Texto e fotos da responsabilidade do autor.
As críticas aos espectáculos de Rogério Nuno Costa podem ser lidas aqui.
6 comentários:
Nota do Autor:
Steiner chama "grande tédio" ao período que vai, sensivelmente, desde o pós-revolução francesa até à primeira guerra mundial, e não ao "período" comummente apelidado de pós-modernidade. trata-se, portanto, de uma confiscação/descontextualização minha, que no texto, por não estar bem explícita, pode induzir em erro.
excelente iniciativa
parabéns ao Rogerio pela escrita atenta e referencial, à Transforma por proporcionar esse encontro, e ao Tiago por abrir o blog a estes textos
Falta mais disto nas artes do espectáculo: notas de processo, cruzamentos referenciais, memórias, impressões, para que o discurso crítico seja público a jusante e a montante dos acontecimentos.
Em relação ao espectáculo, é curioso como o termo crítico que mais se impõs sobre a minha leitura não tenha sido referido explicitamente: a expectativa na relação com o espectador na organização dos elementos dramatúrgicos e teatrais, no cruzamento entre os contextos e a constituição/ confirmação de sentidos. O que vem confirmar a abrangência do horizonte referencial.
excelente iniciativa
parabéns ao Rogerio pela escrita atenta e referencial, à Transforma por proporcionar esse encontro, e ao Tiago por abrir o blog a estes textos
Falta mais disto nas artes do espectáculo: notas de processo, cruzamentos referenciais, memórias, impressões, para que o discurso crítico seja público a jusante e a montante dos acontecimentos.
Em relação ao espectáculo, é curioso como o termo crítico que mais se impõs sobre a minha leitura não tenha sido referido explicitamente: a expectativa na relação com o espectador na organização dos elementos dramatúrgicos e teatrais, no cruzamento entre os contextos e a constituição/ confirmação de sentidos. O que vem confirmar a abrangência do horizonte referencial.
(blague no blog: faltava só It's the final countdown, dos Europe, canção bonita essa)
Obrigado Rogério e obrigado Tiago.
Μοιάζουμε σαν δυο στάλες βροχής
Pedro Manuel: essa sugestão ficaria definitivamente fora da abrangência do horizonte referêncial, mas a canção é bonita sim...
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