terça-feira, fevereiro 14, 2006

Quando o gesto se torna palavra

crítica a À Manhã
pelo Teatro Meridional
19 Janeiro a 04 Fevereiro 2006, Teatro Municipal S. Luiz


Em À Manhã, a segunda incursão de José Luís Peixoto no género dramático encontra a memória de um espectáculo do Teatro Meridional, Para além do Tejo, apresentado no espaço do Teatro da Garagem e vencedor do Grande Prémio da Crítica 2004, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro. As semelhanças e paralelos estão presentes no espaço cénico que continua dominado por uma grande tela branca em fundo, evocando o teatro de feira, as mascaradas, onde o Meridional (ainda) se filia; a música de Fernando Mota mantém-se lúdica, simples e ampla; e o elenco guarda três dos actores daquele espectáculo, Carla Galvão, Carla Maciel e Romeu Costa.

Mas, desta vez, o espectáculo traz palavras e, com elas, a simples delimitação do espaço cénico de Para além do Tejo parece materializar-se em diversos espaços, os montes de cortiça figurando os montes alentejanos, os vãos sem portadas figurando as casas. As palavras trouxeram isso, materializações dos espaços e continuidade das personagens, e é por aqui que À Manhã se autonomiza do estudo do gesto convencional daquele outro espectáculo.

As personagens parecem ter sido o ponto de partida do texto de José Luís Peixoto. Ao encontro da mecânica literária do género dramático, as cinco personagens personificam um encontro (possível) entre dois autores tão distintos como Beckett e Tchékhov. Os homens chamam-se Vlademiro e Estragão, como em À espera de Godot, e as mulheres guardam o nome d’As Três Irmãs, Olga, Irina e Masha. Por outro lado, dois dos elementos que parecem ter influenciado este texto a partir do imaginário de Tchékhov e Beckett são a paisagem e a língua, na ansiedade das irmãs em sair da província (e aqui encontramos Masha que regressa de Londres) ou no cuidado em tecer uma língua dentro da língua (como diria Deleuze). À partida, os elementos parecem dispor-se para uma leitura da parança alentejana centrada na esperança e na falta de esperança, tal como os dois homens esperam Godot, e ele não aparece, ou as Irmãs sonham em voltar para Moscovo, mas não voltam.

No entanto, o texto conduz o espectáculo num sentido bem diferente de qualquer leitura regionalista feita pelo filtro da literatura. As personagens, todas velhas, estão ligadas por laços de amizade e casamento. Pouco a pouco, lançados uns ao encontro dos outros pela demência de Ti Olga, que agita o quotidiano das suas realidades, os velhos começam a reviver o presente através da sua forma mais juvenil, o enamoramento. Romances passados, paixões mal-curadas regressam entretanto e sem perder qualquer vigor. O amor e o enamoramento tornam-se as dinâmicas de relação entre as personagens e isso permite criar momentos poéticos e momentos humorísticos, afastando-se daquelas influências literárias.

Deste modo, tal como o espectáculo se desenvolve a partir de um espectáculo passado, também o texto dramático evolui a partir da memória de outros textos. Daí o título, talvez, proceder à mesma operação, pela semelhança entre a enunciação de uma esperança que esmorece, amanhã…, e a entrega à renovação que desponta, à manhã. O desejo de narrativa sobrepõe-se à tendência reflexiva e esmarrida, condicionando a gestualidade à sua expressividade funcional, onde só os rostos brancos preservam o sentido da máscara. O resultado é um espectáculo envolvente, arrelampando o espectador com as variações do léxico, atraindo-o pela estranha vivacidade dos velhos aos bocanços, e pelo esquenturamento de uma moral romântica, onde o amor sobrevive em qualquer idade.

Finalmente, a apresentação do espectáculo À Manhã no palco do Teatro Municipal S. Luiz, onde ainda há pouco assomou Pina Bausch, ou uma montagem de Shakespeare, vem confirmar o desejo de certos espaços em programar propostas teatrais que até agora saltitavam de espaço em espaço, como tem sido o caso da Culturgest, do Teatro da Trindade, do Teatro Nacional D. Maria II, com grupos como o Meridional, a Garagem, Primeiros Sintomas ou a Casa Conveniente. Este reconhecimento decorre do/promove o reconhecimento destas companhias a nível institucional, criando momentos de mediatismo e proporcionando o encontro com um público que talvez não se deslocasse a certos locais. Por outro lado, pressagia a estabilização dos projectos artísticos nómadas, das suas courelas, à semelhança do que já acontece com outras companhias de teatro, cuja ideia de instituição já deixou de ser adjectiva para se tornar substantiva.[1]

[1] reverência à poética de Gabriel Alves num relato de futebol: um golo substantivo que não pode ser adjectivado!

Pedro Manuel

4 comentários:

indigente andrajoso disse...

percebem-se as referencias, a envolvente cénica e até mesmo a personagem caricatura (que aqui é a real) de outros autores, mas no final senti que poderia ser muito mais.

as referencias eram apenas referencias (como devem ser) mas não senti que a peça tivesse força só por sí, que existisse para além dos autores e interpretes.

uma mera opinião

Anónimo disse...

o texto é maravilhoso, a encenação limpinha e o trabalho dos actores bastante consistente. faltava-lhe qualquer coisa... umas pinceladas mais agrestes que o texto pede.

outra mera opinião

Anónimo disse...

ena, dois comentários!
a sério, é bom saber-se lido.
Guardo o Para além do Tejo com mais prazer - a comparação continua inevitável - e também gostaria que este espectáculo, mais para o final, não deixasse no ar um certo tom de justiça poética (texto? encenação?) mas, lá está, aí é outra mera opinião
obrigado

Anónimo disse...

achei o espectáculo bonito. mas só isso. bonito como uma paisagem. mas olhar para a planicie alentejana é mais belo e real. então porquê fazer teatro só pela apologia do belo? opção? facilitismo? tinha tudo para ser quase genial e fica-se apenas pelo bonito. é pena.