domingo, fevereiro 26, 2006

Ponto de partida

Crítica a Odete Odile
de Sara Vaz
Box Nova, Centro Cultural de Belém
25 Fevereiro 2006, 18h00



Quando, em 1895, Marius Petipa e Lev Ivanov criaram o bailado Lago dos Cisnes depressa se percebeu que o confronto entre as duas rainhas cisnes - Odete, a verdadeira e Odile, a falsa -, faria as delícias dos apaixonados pela dança clássica. Os pas-de-deux com o príncipe Siegfried a darem conta da complexidade feminina e os famosos trinta e dois fouettés (um movimento de rotação sobre o eixo vertical impulsionado pela perna de trabalho) a exigirem da bailarina um rigor e entrega, transformaram a coreografia numa comovedora história de renúncia e paixão que se prolongou por todo o século XX através de recorrentes apresentações pelas mais diversas companhias do todo o mundo.

No entanto, criadores contemporâneos procuraram trabalhar os valores formais do ballet clássico através de coreografias que equilibrassem discursos pessoais e lógicas cénicas. São famosas a versão de Mats Ek (Cullberg Ballet, 1986), com a tónica posta na relação edipiana entre Siegfried e a mãe, com os intérpretes a aparecem de cabeça rapada, e a radicalização de Matthew Bourne (New Adventures, 1995) com um elenco totalmente composto por homens transformados em cisnes agressivos e violentos em nítido contraste com os valores formais do bailado: clareza, harmonia, simetria e ordem.

Odete Odile, a proposta de Sara Vaz para a Box Nova do Centro Cultural de Belém (ainda em work-in-progress) não pode, naturalmente por questões curriculares, estéticas e discursivas enquadrar-se na mesma linha que as coreografias de Ek e Bourne. Mas lança pistas interessantes para o que pode ser o percurso da jovem criadora que se estreia com esta variação pessoalíssima do famoso clássico.

Sara Vaz combina a ingenuidade de Odete (a clássica), representada pelos balões em forma de coração que cola no palco, com a urgência de Odile (a contemporânea), inscrita no modo como vai despindo os diversos vestidos ao longo do breve espectáculo. Ao começar por projectar na parede a recriação somente com dois dedos do solo de Odete, que executa de costas para o público, dá o tom a um espectáculo que depende de uma reflexão séria e atenta sobre a presença do movimento clássico na construção contemporânea.

Procurar ler o discurso acerca da “complexidade da figura feminina” com que quer embrulhar o espectáculo, é correr o risco de perder o modo como interliga os dois universos estilísticos. Através de uma banda sonora da autoria de Rui Vargas, que manipula a composição original de Tchaikovsky para sublinhar a desconstrução a que procede em palco, assistimos a um exercício nada fútil e menos pretensioso (ou agressivo para com o bailado clássico) do que seria de esperar de uma jovem criadora que se move em registos nitidamente vincados pela contemporaneidade (Francisco Camacho, Carlota Lagido, Olga Mesa, Miguel Pereira…).

A Odete e a Odile, de Sara Vaz vão-se agredindo mutuamente, deixando-se contaminar pelos códigos de uma e outra, escapando aos clichés dos registos. A “boneca” que Odete representa é mais ousada do que seria de esperar e dança de olhos fixados no público e sem o sorriso de plástico que se espera das bailarinas. A Odile perde-se no seu próprio percurso de “sempre novo, sempre diferente” que caracteriza o discurso de inconsciência contemporânea. O melhor exemplo para dar conta do modo como se equilibram os dois universos está na interpretação que, enquanto Odile, faz desses trinta e dois fouettés, rasgando o palco com passadas largas, animais, mecanizadas e pouco profundas, numa leitura fascinante acerca do virtuosismo das bailarinas clássicas que o devem fazer em palco sem acusar o esforço.

Numa altura em que é mais fácil proceder-se a uma recusa do clássico e partir para uma pesquisa contemporânea, Sara Vaz apresenta um espectáculo desassombrado, atento às vantagens e desvantagens de cada escola, e tirando delas apenas o essencial. De lamentar apenas que a fusão não se concretize, fazendo com que o espectáculo perca o sentido da evolução. Mas talvez isso seja já impossível, dado o comportamento de costas voltadas que caracteriza o mundo da dança. Até nisso Odete Odile é perspicaz, servindo como metáfora para a encruzilhada em que a dança se vê hoje inserida.

Próximas apresentações:
4 e 5 Março 16h Teatro do Campo Alegre Porto

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