sexta-feira, janeiro 13, 2006

Pais imaginario

"Eu sou uma mulher do Norte!". Foi assim que Isabel Pires de Lima se defendeu ontem perante a Comissão Parlamentar de Ciência, Educação e Cultura, na Assembleia da Republica, para justificar a demissão de Antonio Lagarto do Teatro Nacional D. Maria II. A frase serviu para explicar aos deputados que, no norte, se apresentam contas e se pedem responsabilidades, enquanto que no sul (em Lisboa), minado por esse lobby perseguidor de gente bem instalada na cultura e na comunicação social, não ha regras, não ha ordem, não ha chefes. A Ministra da Cultura chegou para dizer que, com ela na cadeira do Palacio da Ajuda, isso tudo acabou. Em dez meses mudou tudo, das chefias as orientações politicas. So não mudou a Ministra, mesmo desautorizada pelo Primeiro Ministro, mesmo sem ler dossiers, mesmo sem conseguir defender-se das acusações (ou, va la, dos entrevistadores, que são, em regra, isentos), como se viu nas recentes entrevistas ao Magazine da RTP 2 e ao Jornal das Nove, da SIC-Noticias.

Em dez meses de ministério, Isabel Pires de Lima conseguiu o facto notavel de gerir um ministério de costas voltadas para aqueles que deve, numa primeira linha, tutelar: a comunidade artistica. Conseguiu, num acumular de decisões que terminaram na nomeação de Carlos Fragateiro para o Teatro Nacional D. Maria II, juntar uma série de nomes sonantes que raramente dão conta publica das suas posições. Em dez meses Isabel Pires de Lima viveu num pais imaginario, e é nesse pais que parece querer continuar. Em suma, a Ministra da Cultura conseguiu mexer com a comunidade artistica, fazendo com que esta provasse se existe e obrigando-a a mostrar o que quer. Não fosse o absurdo que levou ao facto, e poderiamos considerar que a passagem de Pires de Lima pelo Ministério da Cultura ja não foi em vão.

O que é mais curioso é a forma como a Ministra se esquece que um Ministério da Cultura não é um parque natural onde os animais andam à solta e se deixa que os predadores comam o que bem lhes apetece, sem ordem, regras e controlo. A Ministra esquece-se que a existência de um Ministério para a Cultura pressupõe uma visão orientada e atenta sobre aquilo que é o tecido criativo; sobretudo uma visão atenta às suas fragilidades, conflictos e insuficiências. A verdadeira missão de um Ministério para a Cultura é, na verdade, fazer serviço publico. O que não significa o mesmo que fazer cultura para o povo ou "abrir as portas à população". Porque o povo e a população, e passe a generalização, se não for "obrigado" a reflectir, a pensar, a confrontar discursos, a ser posto em causa, nunca sabera escolher, recusar, optar. é por isso, cara Isabel Pires de Lima, que o papel do Ministério da Cultura se faz a partir daquilo que o povo jamais optara, numa tentativa de equilibrio entre aquilo que a sociedade civil tem para oferecer e a visão estratégica de um programa de governo. Coisa que, ja se percebeu, não deve ter lido, no meio de tantos dossiers que estão a meio. Da mesma forma que, dando à sociedade civil possibilidade de se apresentar - veja, cara Ministra, o nome completo dos programas de apoio do Instituto das Artes: "iniciativas de caracter não governamental" -, deve o Ministério perceber o que, nos espaços que tutela, é o verdadeiro dialogo entre criadores e publico.

O que nos leva ao caso do TNDMII, uma vez que a principal arma de arremesso do discurso de Pires de Lima tem sido o silêncio a que votou qualquer outra area cultural, deixando que o "caso Nacional" se tornasse, aos olhos da opinião publica, a pedra-de-toque do conflicto entre comunidade e Ministério. Ao ser o agente impulsionador da agitação visivel de uma comunidade, e num espaço que, à partida, não apresentaria grandes margens de erro, Pires de Lima esqueceu-se que ha "simbolos" que, mesmo relegados para segundo plano durante anos por essa mesma comunidade, são inviolaveis. Isto não quer dizer que a escolha de Antonio Lagarto seja sacrosanta. Quer antes dizer que a opção entre uma linha que seja consciente do lugar das artes performativas no contexto social, mesmo com erros, é sempre preferivel a um projecto de obra social, como aquele em que o Ministério parece querer transformar o TNDMII "de portas abertas para a população", agora dirigido por Carlos Fragateiro, que fez do Trindade lugar de encontro para as peças mais populistas e convencionais. Dizer que esta so em causa uma linha programatica e funcional e não uma linha estética é, em suma, escusar-se a perceber que a direcção artistica de um espaço é, também, um dialogo com a comunidade e o publico. Quer o Ministério que esse dialogo seja feito com peças como as de Freitas do Amaral, Inês Pedrosa, Salazar Sampaio ou espectaculos inimaginavelmente sofriveis como os de Bruno Schiappa ou Claudio Hochmann e Fraga??? Tera a Ministra da Cultura alguma vez ido, de facto, ao Teatro da Trindade (da mesma forma que so agora foi à Companhia Nacional de Bailado, dez meses depois de se ter sentado na Ajuda, e cinco programas diferentes depois)? Sabera a Ministra o que é o projecto "de portas abertas para a população" de Carlos Fragateiro? E se sabe, se demite Antonio Lagarto por falta de projecto, porque é que apresenta um nome sem apresentar um projecto? Ou melhor, porque é que não apresenta um projecto e depois procura nomes que o cumpram?

Mas pensemos então no que tem sido esse "divorcio evidente" entre publico e Teatro Nacional, como apontou o Secretario de Estado na conferencia de imprensa da passada segunda-feira. Pensemos, por exemplo, na festa do Dia Mundial do Teatro em 2005 e naquilo que foi a sua programação: Serviço d'Amores, de Maria Emilia Correia, Garret no Coração, de Fernando Gomes/Klassikus, 5*****, pelo Teatro Praga, concerto com Luisa Cruz e Jeff Cohen, entrega dos prémios Almada e Ribeiro da Fonte e festa VJ, com a colaboração do Clube Português de Artes e Ideias.

A peça de Maria Emilia Correia é uma adaptação dos textos de Gil Vicente, o mesmo que é representado por uma estatua no alto do frontispicio do TNDMII, numa estrutura dramaturgica pouco convencional e apta a aproximar publicos e gerações. Foi a propria presidente da Associação Portuguesa de Criticos de Teatro, a teatrologa Maria Helena Serôdio que, em declarações ao jornal PUBLICO, no fim do ano 2005, considerou esse como uma das propostas "mais interessantes" estreadas no ano passado. Enquanto este espectaculo ocupava a Sala Principal, no Salão Nobre, o encenador Fernando Gomes oferecia um musical-revisteiro a partir da figura de Almeida Garrett, o fundador do proprio TNDMII. E, na cave, o Teatro Praga apresentava uma deconstrução das hierarquias teatrais, num espectaculo que, dado o sucesso, teve que ter um aumento de sessões. Cara Isabel Pires de Lima, ja percebeu onde é que quero chegar? é que para além destes três espectaculos, o Teatro Nacional ainda foi palco para a entrega dos prémios que proprio Ministério atribui aos agentes culturais anualmente, cerimonia na qual esteve presente o Secretario de Estado, com um discurso elogioso acerca da casa cheia. E se mais faltasse para exemplo, que tal, senhora Ministra, saber que as portas do TNDMII estiveram abertas até bem tarde, numa festa desempoeirada, onde conviveram criadores e publico que, garanto-lhe, porque mo disseram, nunca tinham ido ao Nacional.

E, na reentre, que tem a Ministra a dizer da abertura do espaço à ExperimentaDesign com exposições, ou ao festival Temps d'Images, com dois espectaculos co-produzidos pelo Nacional, dando-se assim opção aos espectadores entre três peças em cartaz. Ou ainda os lançamentos de livros, entre os quais a edição simultânea da tradução de Berenice, por Vasco Graça Moura, que, finalmente, entrou no palco do Nacional. Ou a entrega de prémios, como os da Associação Portuguesa de Criticos de Teatro. Ou os concertos: Lia Gama, Vera Mantero, Misia, Anamar, Luisa Cruz, Mario Laginha. Ou os recitais. Ou os debates. Quer dizer-me, senhora Ministra, quando é que foi a ultima vez que se viu tamanha agitação no Teatro Nacional D. Maria II?

Pois. E agora, como vai ser? Se o Taborda esta sem programação, se o Maria Matos esta fechado, se o S. Luiz faz o que pode, se o Trindade fecha, se o CCB esta obsoleto, se a Gulbenkian esta em reunião, se os concursos pontuais abrem atrasados... vai o Nacional entrar em rota de colisão, uma vez mais, com o tecido criativo? Sabera a senhora Ministra qual o verdadeiro papel do Teatro Nacional D. Maria II? Sabera que, finalmente, começava a haver alguma coisa que se visse? Se a propria Ministra diz que não lhe estão a dar tempo para apresentar as suas propostas, que diz agora do tempo que não esta a dar para a organização de um espaço que era, ha pouco menos de dois anos, um espaço defunto?

2 comentários:

Anónimo disse...

bem dito sim senhor.

Anónimo disse...

No fundo merecemos esta mediocridade. É fragateiro no nacional, qualquer dia musicais ligeiros no s. carlos, é a americanização do entertenimento e a tentativa de apelidar isso de cultura. arte fast food. um ensino que parte do principio que os alunos serão sempre incultos e portanto uma sociedade a estupidificar. merecemos pois não lutamos contra nem emigramos com bilhete só de ida. acomodamo-nos à mediocridade. MEA CULPA.