Mala Voadora [Negócio (ZDB), 6 de Janeiro]
O escritor francês Georges Pérec disse numa entrevista que o valor literário das palavras depende muito do estado de espírito de quem as lê. Por exemplo, um leitor com fome apreciará muito mais ler o menu de um restaurante que um grande romance. Nesse sentido, um dos mais fortes ingredientes literários de uma boa receita de cozinha é a sua capacidade de abrir o apetite através da descrição. A descrição confecciona essa capacidade de dar a ver, pelo que os melhores leitores de livros de receitas deveriam ser cegos, e as imagens dos frangos e das massas e das batatas douradas deveriam ser acompanhadas de uma breve legenda ou dos testemunhos de quem comeu (e, nalguns casos, sobreviveu para contar). Por outro lado, a descrição implica também as suas estratégias e os seus protagonistas: quem descreve o quê, e como?
O espectáculo Projecto de Execução, apresentado no Negócio, conclui uma residência artística na ZDB e dá continuidade aos outros espectáculos apresentados, Os Justos e Philatelie, sobretudo através da ideia de material teatral, numa experimentação dos processos criativos de devised theatre. Para este projecto, o material teatral foi criado em três jantares, na casa de cada uma das três actrizes. Estes três acontecimentos foram registados nas suas diversas manifestações: palavras, gestos, caminhos, sons. Os ingredientes dispersos foram depois seleccionados e organizados para criar um novo acontecimento: o espectáculo. O processo criativo organizou estes elementos, transformando os três acontecimentos quotidianos num acontecimento teatral, actuando como modulador dos acontecimentos elementares. E o que parece estar na base desta organização é, precisamente, a ideia de receita. Mas invertida.
O modelo convencional de receita é o da descrição singular dos ingredientes e das quantidades e, num segundo momento, a associação desses ingredientes, a descrição da acção, o acto de cozinhar, a didascália da confecção, a ética do preparo. Neste segundo texto, pela associação e projecção dos elementos numa acção, a descrição assume uma dinâmica narrativa e literária. Torna-se um projecto de execução. O paralelo seria então entre a descrição conjunta dos três jantares que é decomposta na descrição singular dos ingredientes, os acontecimentos elementares. A decisão artística recai então sobre a selecção e organização desses elementos, é a receita do espectáculo que caracteriza a sua linguagem.
Projecto de Execução começa na obscuridade, ouvindo-se os sons de quem prepara um alimento, o corte, o óleo a ferver, o entrechocar de talheres e pratos, usados por corpos invisíveis, cuja presença se adivinha atrás das lanternas que projectam as sombras dos utensílios de cozinha na tela. O dispositivo cénico de Projecto de Execução é constituído por duas telas de tecido que se erguem na aresta de um quadrado branco. A solução é simples e eficaz, orientando-se em função da delimitação de um espaço vazio, livre de referências e de uma funcionalidade. A economia de elementos contribui para essa função de circunscrição de um espaço de jogo, uma vez que a organização dos materiais teatrais segue um esquema lúdico, desde a criação destes, ao processo, à apresentação. A utilização de luz azul e branca reforça a sensação asséptica e silenciosa de um espaço vazio. Este aspecto acaba por caracterizar o dispositivo cénico como um espaço de possibilidades, um espaço cénico dentro de outro, um palco. É assim que os figurinos das actrizes colocam a sua presença segundo a ideia de demonstração. Elas aparecem com vestidos femininos e saltos altos, como para uma ocasião de cerimónia, talvez um jantar.
Mas a única coisa que fazem é movimentarem-se em várias direcções, os mil caminhos que se fazem dentro de uma cozinha para preparar a refeição. A memória dessa movimentação tornou-se na marcação, despojada de elementos de interpretação, de aspectos reconhecíveis, como abrir uma gaveta, apanhar qualquer coisa do chão ou abrir um armário. A memória desses acontecimentos e desse espaço, a cozinha, é recordada uma segunda vez através da projecção vídeo. Por fim, as três actrizes juntam-se e reproduzem uma conversa. Mas também este texto é interpretado com a mesma ausência de elementos reais ou figurativos. A colocação da cena verbal no final equilibra o espectáculo, num momento em que a sequência de movimentos corria o risco de perder leitura, resgatando a atenção público através do humor. Fica uma dúvida: sendo que a escolha do prato do espectáculo poderá ter sido determinada num dos três jantares, porque é que o projecto é protagonizado por três mulheres?
Projecto de Execução é um espectáculo com uma segura orientação dramatúrgica, criando uma encenação precisa e equilibrada, como se nota na forma como a duração é trabalhada. As cenas poderiam ter sido mais desenvolvidas nos seus ritmos e possibilidades, como no caso da utilização do vídeo, mas a ausência de narrativas ou metáforas concentra a acção teatral na demonstração. Esta demonstração permite criar a mesma dinâmica sugestiva da descrição da acção, como vimos com as receitas de cozinha. Por outro lado, desenvolve bem a ideia de demonstração como linguagem teatral, proporcionando ao espectador o gozo de assistir à execução do projecto.
E agora, para a análise crítica ficar completa, o que falta mesmo é uma receita de bacalhau:
Ingredientes do bacalhau: 500g de bacalhau 500g de batata 3 tomates maduros 1 pimentão verde 1 pimentão maduro 2 cebolas médias azeite alho sal
Modo de preparar: Coloque o bacalhau coberto por água a ferver, dê uma ligeira cozedura (um entalão), escorra e guarde esta água. Desfie em postas menores e refogue com o azeite, o alho e os pimentões cortados em fatias compridas. Corte as batatas, os tomates e as cebolas em rodelas. Utilize uma panela ou forma para cozer os outros ingredientes no vapor, da seguinte maneira: coloque uma camada de bacalhau (já preparado anteriormente), uma camada de batata, uma de tomate, uma de cebola e regue com bastante azeite. Repita as camadas e depois leve ao forno. Quando as batatas estiverem cozidas, estará pronto. Acompanhe com vinho tinto e delicie os seus amigos.
Pedro Manuel
2 comentários:
obrigado pelo texto, pedro. infelizmente nao vou poder ver, assim ja tenho uma ideia. a coisa que me escapou e: mas essa execucao traz alguma coisa? leva algures? o que dizem, o que descobrem, ou faltam de descobrir?
olá Vvoitek
Feliz ano novo!
obrigado pelo comentário
a execução não traz mais que o seu desempenho, por isso é que quis salientar a natureza da demonstração
O que se descobre são os elementos singulares, desligados da sua função prática, sons soltos, gestos soltos, palavras soltas, isto, o que fica à vista é o material teatral
Quanto a mim, o que faltaria descobrir era o desenvolvimento das cenas, acelerá-las, e era criar um campo de leitura sobre a escolha de três mulheres, porquê três mulheres?
abraço
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