sexta-feira, janeiro 27, 2006

A dança-teatro e o paradoxo

por Patricia Mendes

«Uma verdade em arte é algo de que
a contraditória é igualmente verdadeira.»
[1]

Esta é uma leitura da estética do paradoxo sobre a obra de Pina Bausch «Se há um autor que fez do paradoxo um meio de criação de movimentos, foi com certeza Pina Bausch. Como ela própria diz a propósito da interpretação de uma qualquer situação de uma das suas peças: ”Pode sempre ver-se também o contrário”; ou ainda: “O que acho que está bem é uma pessoa poder ver de certa maneira e outra de uma maneira completamente diferente».[2]

Num espectáculo da companhia de Pina Bausch temos as relações humanas, um vocabulário de movimento quotidiano e a colaboração entre diferentes formas de arte. Do seu processo de trabalho resultam uma série de aspectos formais e estilísticos que fazem parte desta dinâmica paradoxal. Em relação à cenografia resulta dos seus espectáculos possuir um forte impacto visual, devido ao uso de cenários orgânicos, que muitas vezes nos remete para impressões cinematográficas. Depois, os seus figurinos, do qual fazem parte os vestidos de noite e os fatos, sugerindo um jogo irónico através de papéis sociais que completam o desmedido espaço cénico.

A sua pesquisa coreográfica incorpora e altera a dança clássica, convergindo-a e fazendo-a divergir no seu processo de trabalho, na sua forma e conteúdo, contrariando-a com movimentos quotidianos, teatralidade, repetições e colagens, assumindo a herança e a tradição como material dramaturgico: em Nelken temos uma cena com o bailarino Dominique Mercy fazendo os movimentos do ballet clássico, vestido de cor-de-rosa; ou um Bandoneon «Timidamente, Dominique Mercy avança sozinho, vestindo um tutu de bailado romântico: amarfanhado, desapertado, desajeitado. Executa um tendu, arrisca um plié (...) talvez seja o símbolo mais agudo e significativo da relação presente entre Pina Bausch e a dança clássica – a dança como impotência de dançar, como radicalização de uma exibição inútil, como remoção dolorosa de um esquema que se tornou grotesco.»[3]

Neste sentido, as obras de Pina Bausch remetem para uma afirmação da representação cénica da vida, porque os espectáculos incorporam movimentos e elementos da vida diária, do quotidiano, precisamente para demonstrar que são tão artificiais, como a sua representação cénica, criando tensões paradoxais. Nas suas peças vemos bailarinos que caminham, conversam, dançam pequenos movimentos, falam com o público, olham para nós, quebrando as nossas expectativas e despertando o nosso desejo pela dança. São bailarinos solitários, desunidos, dessincronizados, desamparados, transitórios do nada para o nada.

Assim, os espectáculos da coreógrafa decorrem transversalmente, vem de dentro para fora, envolvendo todos os que nele participam: bailarinos e espectadores «Praticamente todos os Stücke de Pina Bausch tratam de questões fundamentais sobre a condição humana e obrigam o público a confrontar-se com as questões postas pelo amor e pela angústia, pela nostalgia e pela tristeza, pela solidão, pela frustração e pelo terror, pela infância e pela velhice, pela morte, pela exploração do homem por outros homens (e sobretudo da mulher pelo homem num mundo organizado segundo as concepções masculinas), pela memória e pelo esquecimento ou, enfim e cada vez mais, pela destruição do meio natural pelo homem. (...) Remete-nos para a nossa própria insuficiência e, provocando em nós uma crispação constante...»[4].

A linguagem artística de Pina Bausch é paradoxal porque a coreógrafa cruza duas linguagens diferentes – a dança e o teatro. A dinâmica paradoxal está presente numa espécie de fusão da dança e do teatro, é nessa fronteira, nessa ressonância entre as duas linguagens que mora o paradoxo: «ao nascimento de um novo tipo de espectáculo; este será, como uma revista, composto de colagens, de imagens que esbatem como um num sonho e de muitas histórias paralelas estruturadas segundo o princípio do conflito estético entre a tensão e o repouso, o forte e o fraco, o claro e o obscuro, o grande e o pequeno, o triste e o alegre. Nasce uma forma que se equilibra audaciosamente entre a arte e a banalidade, a desilusão e o pathos, e eleva a repetição à categoria de princípio estilístico.»[5]

A dança-teatro tem que ser observada numa perspectiva multidisciplinar, porque dela também fazem parte: a performance, artes plásticas, o vídeo «...não se trataria nem de teatro nem de dança. Todavia deve dizer-se o contrário: a arte de Pina Bausch faz correr um fio que serpenteia entre todos os géneros de espectáculos (ou performances)»[6]. Os seus espectáculos apresentam interacção entre outras artes, mas sem rejeitar a dimensão teatral. Contudo, num gosto pelo transdisciplinar, encontramos uma porta para a compreensão de uma linguagem artística paradoxal, heterogénea, criadora de diferenças, diferencial. E, no entrecruzar de linguagens artísticas, Pina Bausch desenvolve o que podemos chamar de processos paradoxais da Dança-Teatro: a repetição, a colagem, o quotidiano.

Através da repetição de movimentos e palavras, a coreógrafa explora a natureza da dança e do teatro de forma paradoxal; a repetição estimula a dinâmica paradoxal, porque por meio da repetição encontramos pontos a divergirem. A repetição é usada também para “desarrumar” a técnica clássica [7], e a própria sociedade. As cenas do Café Müller são exemplo desse método da repetição. Este processo paradoxal da repetição é usado nos espectáculos da coreógrafa não apenas como um método coreográfico, mas como um tema a ser criticamente decomposto, até gerar a diferença.

Pina Bausch também compõe as cenas através do método de colagem: pequenas cenas ou sequências de movimentos fragmentadas, repetidas, alternadas, ou realizadas em simultâneo, sem definido um desenvolvimento na direcção de uma conclusão. A sua construção é fragmentada, por isso o todo é uma sobreposição de partes. No espectáculo Nelken temos uma cena onde todos os bailarinos habitam o palco, fazendo uma sequência de movimentos dançados com cadeiras. Ao mesmo tempo, o espaço cénico é transformado com um amontoado de caixotes, e duas enormes torres (andaimes) trazidos por profissionais especializados que participam também no espectáculo.

Esta é uma cena com algum delírio, ou loucura, porque as cenas de conjunto implicam um êxtase em palco. Porque enquanto os bailarinos executam, como um todo, esses movimentos dançados, uma das bailarinas anda pelo palco, completamente desnorteada, com um microfone, numa espécie de pânico, precisamente por causa do corrupio dos profissionais especializados, que para além de transformarem o espaço cénico, participam em situações de risco físico que intervêm nessas duas grandes torres. Em muitos dos seus espectáculos, acontecem cenas de caos de grupo, com uma ordem inerente, mas que são apresentados exactamente como caos de relações humanas, de sentimentos, de afectos.

O quotidiano é uma presença constante nos trabalhos de Pina Bausch, através das palavras e dos gestos comuns – que interagem também com palavras e gestos de outras linguagens, literatura ou linguagem gestual. Esta presença acompanha a criação de um espectáculo através do processo de ensaios que, como vimos, modifica as experiências pessoais dos intérpretes em material artístico. Pina Bausch fala de amor, da infância, das pessoas comuns, de um estranho mundo humano, mas de onde se pode retirar uma característica que tem a ver com a universalidade do seu gesto. No palco, os gestos ganham uma função estética, porque se tornam estilizados e tecnicamente estruturados. Quando os gestos quotidianos são trazidos ao palco, através da repetição, tornam-se abstractos, no sentido de não estarem conectados com as suas funções diárias, são gestos carregados de emoção. Ou seja, quando um gesto é feito pela primeira vez em palco, ele pode ser interpretado como uma expressão espontânea, mas quando é tocado pela repetição fica exposto como um elemento estético, o mesmo acontece com as palavras, repetidas até que se dissolvam dos seus significados literais.

Os espectáculos de Pina Bausch são espectáculos totais, onde o bailarino pode dançar, estar parado, falar, cantar, e não só o bailarino, mas tudo o que está em seu redor: a música, as imagens, o cenário por causa do lado habitacional que o próprio cenário também é. Desta totalidade de espectáculos ressalta uma constante incompletude, uma busca e transformação dentro de um pensar-sentir-fazer fragmentado. Estamos perante um mundo indizível e subjectivo dos significados que os corpos dos bailarinos expressam.

O paradoxo da dança-teatro surge da envolvência de duas linguagens artísticas que coexistem no mesmo corpo, na mesma atmosfera onde «a dança de Pina Bausch tem a vida toda lá dentro»8. A sua linguagem mostra-nos o paradoxo como doador de sentidos, de múltiplos sentidos, num movimento de criação de sentido diferencial. A dança-teatro de Pina Bausch está inscrita numa lógica paradoxal. A contradição e o paradoxo são qualidades da sua dança-teatro. Porque do paradoxo resulta uma proliferação de sentidos, que provém da ressonância, de um ressoar entre a dança e o teatro.

O paradoxo é o fio condutor utilizado para apresentar o universo da dança-teatro de Pina Bausch. A coreógrafa foi responsável pela criação da dança-teatro: uma forma de expressão artística que elimina os limites entre a dança e o teatro. Por isso estamos no domínio da impossibilidade de atribuir explicações às experiências que as suas obras nos transmitem.

Notas:
[1] Wilde, Oscar, «A verdade das máscaras», in Intenções – quatro ensaios sobre estética, Cotovia, Trad.Portuguesa, lisboa, 1992, pg.203.
[2] Gil, José, «Os gestos de pensamento: Pina Bausch», in Movimento Total - o corpo e a dança, Relógio d’água, Lisboa, 2001, pg.213.
[3] Bentivoglio, Leonetta, «Os espectáculos do Wuppertal Tanztheater», in O teatro de Pina Bausch, Fundação Calouste Gulbenkian, Trad.Portuguesa, Lisboa, 1991, pg. 144, 145.
[4] Idem, Ibidem, pg.87,88.
[5] Schmidt, Jochen, «Da modern dance ao tanztheater», in Colóquio Pina Bausch: falem-me de amor, Fenda, trad. Portuguesa, Lisboa, 2005, pg. 93.
[6] Gil, José, «Os gestos de pensamento: Pina Bausch», in Movimento total - o corpo e a dança, Relógio d’água, Lisboa, 2001, pg. 214.
[7] Em Bandoneon , a cena do bailarino Dominique Mercy tentando fazer um passo de dança clássica, repetindo-o algumas vezes sem sucesso.
[8] Galhós, Claúdia, «O esquecimento essencial», in Revista Actual, número 1718, Outubro, 2005, pg.36

Patricia Mendes é licenciada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa. requenta o Ramo de Formação Educacional. Este texto é um resumo da tese de licenciatura em Filosofia «A estética do paradoxo na obra de Pina Bausch», orientada por José Gil.

3 comentários:

ananda disse...

Excelente! O pessoal de Filosofia é assim. ;) Parabéns!

Unknown disse...

boas noites,

chamo-me rui pires e estoy a frecuentar um mestrado em estudos artisticos e pretendo fazer a minha tese na área da dança contemporanea. gostaria de entrar em contacto com Patricia Mendes para trocar algumas ideias e pedir alguma ajuda. se puderem fazer-lhe chegar esta mensagem agradeço.

rpiresj@gmail.com

monica disse...

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