domingo, julho 10, 2005

Crónicas de domingo (I)



Ballet Gulbenkian: movimentos perpétuos

Na decisão de extinção do Ballet Gulbenkian, anunciada no princípio desta semana pelo Conselho de Administração da Fundação e após 40 anos de um mapear da dança em Portugal, encontram-se sujeito e envolvente num discurso que obriga a uma reflexão sobre o lugar da dança na criação artística e, nomeadamente, no tecido criativo nacional.

A notícia só apanhou de surpresa os que consideravam eternas as estratégias de uma instituição, sem terem consciência que essas correspondem a um levantar de questões/apresentação de respostas para problemáticas do mundo que as rodeia. E ainda, a surpresa só foi total para os que não quiseram alargar os recorrentes discursos dos dois últimos administradores, bem como recusar uma leitura do que já anteriormente fora extinto ou integrado (nos últimos anos: Serviço Acarte, Programa de Bibliotecas Itinerantes, Encontros de Música Contemporânea, redução de apoios a projectos pontuais de criação artística).

Do conjunto de instituições com acção na cultura, a Gulbenkian sempre foi vista como um oásis num país sem política cultural definida, uma comunidade atenta, responsável e coesa (ou coerente) e um público exigente e activo. E desde a sua fundação, a Gulbenkian, na cultura como em outras áreas, foi ocupando um espaço vazio, não por inexistência de recursos, mas vago por uma inércia e inacção de sucessivas gerações de políticos, criadores e público. Havia uma espécie de 'paz podre' entre a sociedade e a Gulbenkian, sem um 'contrato social' firmado e, naturalmente, dependente daquilo que fossem as estratégias da Fundação.

Importa, pois, pensar no que representa a expressão 'obrigatoriedade moral e social', usada esta semana por vários criadores, pensadores e outros agentes, em resposta à notícia da extinção. Esta 'obrigatoriedade' está naturalmente potenciada pela consciência da fragilidade da envolvente e baseada nessa crença comodista de 'quem pode, deve'. É claro que pelo facto de ser uma instituição privada, e por isso liberta de reportar a outrem, a Gulbenkian sempre pôde mais que o próprio Estado pois neste, e no que à cultura diz respeito, levantam-se sempre questões (por vezes mal formuladas) acerca de critérios de escolha, 'adjudicação de gostos' e imposição de modelos. Pelo facto de ser privada (e ter capital próprio), a Gulbenkian pôde sempre. Por isso, como disse Olga Roriz, coreógrafa com uma história fortemente ligada à companhia, passado o choque, a primeira coisa que se deve fazer é agradecer por durante 40 anos ter havido o Ballet Gulbenkian em Portugal. Sobretudo se pensarmos no que isso representou de um rasgar de fronteiras para a inscrição da dança em Portugal e da dança portuguesa fora do país) e a recusa em perpetuar modelos pouco condicentes com as mais eficazes (e pertinentes) tendências mundiais.

Mas também porque fomos 'educados' a olhar para a Fundação Calouste Gulbenkian como um marco de rigor, transparência, contenção, respeito pelo criador e objectos artísticos e, no limite, como espaço de comunhão de objectivos, o choque vem do modo como a notícia foi divulgada. A 'morte súbita' de um projecto que teve vários 'cantos do cisne', chega numa altura em que se reconhecia o esforço de implementação de um programa que fizesse reflexo daquilo que são as preocupações de definição de fronteiras de criação. E um programa que estava a apostar em criadores nacionais, desenvolvendo assim uma relação próxima com o meio num processo de transferências de saberes, práticas e visões.

O comunicado, lançado para as redacções da comunicação social duas horas depois de ser lido aos primeiros envolvidos, constrói-se de uma frieza rude e quase amoral, escusando atéa um formal agradecimento aos que fizeram do Ballet Gulbenkian a instituição da dança em Portugal. É o modo (a forma) que choca, pela quase ausência de responsabilidade para quem nela trabalhava. E depois, naturalmente, pela imagem que passa para o meio e público. Para além de que uma programação não se pensa para ser cancelada, no que isso representa de fim de contratos e ideia de 'leviandade' na estratégia.

No que isto possa parecer de contraditório, não está em causa o fim do Ballet Gulbenkian tal como o conhecemos (regressamos sempre às estratégias privadas), mas antes a total incapacidade de encaixe desta atitude que têm (certamente) consciência dos efeitos que provocará no meio em que se insere. Ao cortar cerce ambições, desejos e projectos pessoais em nome de um colectivo dos mais prestigiados da Europa, a Fundação Calouste Gulbenkian parece querer recusar uma história da dança em Portugal que é, em grande parte sua. E ao querer apostar em novos projectos (aos quais se deve louvar a pluralidade e esperar o cumprimento consciente das intenções), sem procurar integrar aquela que é a sua imagem de marca (o Serviço de Música é o sector mais exposto da Fundação), ficamos com a ideia de estar perante um 'suicídio assistido'.

Desconhecendo-se, em concreto, os novos modos de actuação (e essa é outra das surpresas numa Fundação que nunca deixou nada em suspenso), a aposta parece então ser uma de re-arranque, em nome de um novo lugar para a presença da Fundação no sector da dança em Portugal. Mas porque a dança é, neste país, uma das áreas mais desprotegidas (pela sua especificidade, certamente, mas também pela exigência e inerente selecção natural), custa entender como se termina com um referencial e modelo, uma vez que é pela recusa ou aceitação desse modelo que se desenvolvem práticas coerentes. Veja-se o caso do teatro, em que a inexistência de um modelo levou à proliferação de objectos pouco enquadráveis e ainda mais efémeros.

Quem vive atento ao que se vai fazendo na dança em Portugal (a referida envolvente) sabe que a realidade não é tão coesa como a que a Fundação Calouste Gulbenkian aponta para justificar o fim da companhia, escusando-se a uma renovação a partir da sua própria história. Os projectos pontuais perdem-se na burocracia dos concursos de apoios e nos que os têm, poucos são os que produzem de forma continuada. As estruturas de criação vivem de incapacidades de manutenção de repertório e muito menos com viabilidade para sustentarem projectos pouco mais que individuais. Não há capacidade organizativa e financeira para workshops, master classes ou cursos de aperfeiçoamento e reciclagem com criadores internacionais e o ensino ainda não permite uma abrangência de noções e valores condicentes com as necessidades criativas do meio. Há uma dificuldade em encontrar um espaço de coerência programática e um critério de selecção que force um pensamento sobre o que se faz, incluindo a inexistência de fortes programações de dança nos espaços culturais, incapacidade de integração de propostas de dança em festivais, e escassa existência de festivais regulares. E, sobretudo, há um défice de credibilidade na Companhia Nacional de Bailado (que não se relaciona com o valor interpretativo dos bailarinos), mas que a impede de ser considerada um referente e a fez viver durante anos na sombra do Ballet Gulbenkian. Basta aliás pensar nas últimas propostas da estrutura e nas decisões de apresentação em galas internacionais (a do próximo ano prevê uma glosa aos Ballet Trocadero), para perceber que falta um pulso firme e uma definição do seu papel na dança em Portugal, que certamente não acontecerá nos tempos mais próximos.

Por tudo isto, e muito mais que a prática e observação permitem constatar, a substituição do Ballet Gulbenkian por um vasto programa de apoios diversos, poderá significar a perda de um escape para a criação nacional. O peso que carrega é potenciado pela frágil envolvente e isso provoca uma onda de choque e surpresa difícil de sustentar. Para além de que força a uma maior credibilidade tudo o que a seguir a Fundação propuser fazer na área da dança. E se observarmos os resultados do curso de Criação Artística em Dança, integrados já na nova linha de apoios, depressa podemos considerar, face à fria recepção, que o caminho não pode só passar por uma aposta em novos valores.

O fim do Ballet Gulbenkian depois de 40 anos deixa órfã uma prática pouco definida e incapaz de competir com outras, seja pelo modo como se organiza ou pelo que propõe. Talvez o que a Fundação esteja a provocar seja a existência de um amplo e franco diálogo sobre o lugar da dança na criação nacional. Talvez o choque impeça perceber os efeitos benéficos de tal decisão. Mas, para já, nada parece justificar o fim de uma companhia que fez pela dança em Portugal aquilo que um país não soube fazer pela dança.

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