Outras leituras do teatro em português
O teatro em Lisboa no tempo da Primeira República
O Museu Nacional do Teatro dá à história do teatro português um novo contributo através da edição do 3º volume da colecção "Páginas de Teatro". Desta vez dedicado àquele que se fazia em Lisboa no tempo da Primeira República (os outros dois, que foram reeditados por ocasião deste lançamento, davam conta do teatro em Lisboa no tempo de Almeida Garrett (n.º1, Outubro 2003) e do Marquês de Pombal (nº 2, Março 2004)).
O estudo de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos procura uma leitura da história do teatro centrando-se menos na dramaturgia e na biografia dos actores, e mais em aspectos de organização, seja ela teatral ou social. Nesse aspecto, distancia-se das outras histórias já feitas (por exemplo, Luís Francisco Rebello, Duarte Ivo Cruz, José Oliveira Barata) e oferece um complemento sem conotações pejorativas. Ainda que Duarte Ivo Cruz recuse, no prefácio a esta obra, a ideia de complementariedade, este estudo permite anular uma certa ideia de acessório relacionada com o que acontece fora do palco. Porque, na verdade, e no período a que se reporta este ensaio (1910-1926), podemos considerar que esses factores externos contribuíram para o desenvolvimento de uma dramaturgia e permitiram o estabelecimento das bases de um teatro em português para todo o século XX.
A obra apresenta-se com a vontade de propor uma viagem que seja o mais abrangente possível. Esse aspecto é bastante meritório já que resgata uma série de questões fundamentais para se compreender as escolhas que compõem a história do teatro em Portugal. O trabalho de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos apela ao ultrapassar de um "preconceito teatral" existente que insiste no destaque de um ou dois aspectos do conjunto de práticas teatrais: quase sempre a dramaturgia e o papel dos actores. Não querendo, naturalmente, recusar a importância fundamental para a fixação de uma história destes aspectos, convém perceber (como as autoras o fazem) que o espectáculo teatral não surje "do nada". Antes é o resultado de um conjunto de escolhas e opções ou, se quisermos, de soluções. Sobretudo num período como o que aqui é tratado.
Falamos de um espaço temporal pleno de influências artísticas, mudanças comportamentais e sociais e definição de novos valores. E o que este ensaio provoca é uma leitura sobre o teatro "quer na sua vertente de ritual social quer como objecto de consumo". Mesmo que quando nos reportemos à prática não se sintam "cortes significativos" com a mudança de regime ou assistamos, num nível dramatúrgico "a um compromisso, só na aparência paradoxal, entre a sensibilidade romântica e uma estética naturalista" (p.11).
Aquilo a que as autoras chamam de "aspectos curiosos" não são mais que um devolver ao teatro a sua definição fundamental: um conjunto de práticas, técnicas, aspectos e circunstâncias que integram definitivamente o fenómeno teatral numa sociedade e dela absorve o que lhe importa (ou consegue) tratar.
O livro atravessa, por isso, campos como a história de alguns edifícios, o funcionamento das instituições, a formação dos actores, a crítica, a recepção dos espectáculos, as associações de classe ou o papel dos empresários na construção de repertórios. Dá ainda conta de importantes discussões acerca do papel do Teatro Nacional e das diversas variantes dramatúrgicas do espectáculo teatral de então. Completa-se com breves biografias de alguns actores que, tendo surgido nesta data, marcaram a história do teatro em português. O livro apresenta, ainda, um conjunto fotográfico que permite um olhar interior (ainda que breve e algo pitoresco) da realidade lisboeta.
Contudo, o teatro de que Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos tratam mais demoradamente corresponde a uma fatia da intensa actividade daqueles anos. É aliás curioso que as autoras excluam do ensaio a importância do nascimento do Parque Mayer (1922), já que isso implicou, para o teatro declamado, uma reformulação, preso que ficava entre o fausto da ópera e o deslumbre provocado por alguns espectáculos de revista, que se preocupavam em dar conta de um universo próximo dos music-hall franceses e musicais ingleses. Não se referem também a todo um conjunto de denominados "teatros de 2ª ordem" (entre os quais teatros de feira, palcos fora do centro da cidade, casas com menos qualidade arquitectónica), onde muitos textos chegavam a ser experimentados, de onde saíram alguns actores que viriam a ser cabeças de cartaz dos grandes palcos (alguns deles recusando até esse passado), ou teatros que se aproximavam mais de um público iletrado.
Seria interessante uma reflexão sobre a influência do cinema na abordagem teatral. Não só ao nível cenográfico, mas também as soluções que os empresários encontravam para equilibrar as fracas receitas. Soluções essas que iam desde coisas simples como a instalação de sistemas de aquecimento nos teatros, à alternância de exibição de filmes e peças, aproveitando, assim, o facto de alguns actores poderem aparecer nos dois formatos. O marketing associado ao teatro começava a surgir de uma forma mais intensa e é importante ter em conta que estes espectáculos e estes artistas (logo a dramaturgia reconhecida e os nomes que ficaram) dependiam das receitas de bilheteira e não de subsídios. Todo um tecido social e cultural que se reflectia nas escolhas dramatúrgicas, cénicas e comportamentais dos teatros. Matérias que compõem, de forma mais rica, uma visão do período em causa.
Do conjunto de temas que a obra pretende tratar, merece destaque a abordagem ao teatro infantil, ainda que esta seja breve. Sobretudo porque o teatro infantil a que as autoras se referem pouco tem a ver com os exemplos actuais. No período da Primeira República, isso correspondia a uma "reflexão mais vasta sobre a educação, a questão do teatro como 'arte eminentemente social' e como elemento educativo, sobretudo o teatro escolar", alicerçada numa tentativa de debate "sobre o valor pedagógico do teatro para/por crianças" (p.120). Dão o exemplo do Teatro Infantil do Rossio que "nos anos imediatos à implantação da República, vê-se aparecer em cena, materializadas por crianças, os mesmos caracteres e problemáticas que a revista feita por adultos criava em simultâneo" (p.124). Esta realidade (abordada pela autora Glória Bastos em tese de doutoramente que urge editar) expressa uma noção mais lata de espectáculo e de realidade teatral, já que permite encarar uma ideia de participação colectiva na construção de um tecido pleno de ideais revolucionários. E é em aspectos como este que a obra enriquece uma história do teatro por explorar.
Podemos considerar que o trabalho de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos na pesquisa e organização de um período que não primava por uma preocupação historicista é de louvar. Sobretudo se considerarmos que o manancial de informação com que tiveram de lidar é, muitas vezes, contraditório. Contudo, esta análise ficaria enriquecida se tivessem optado pela inclusão de um glossário (sobretudo porque há termos e funções que evoluíram e que carecem de contextualização actual) ou um índice onomástico. Torna-se difícil para o leitor menos atento e desconhecedor das práticas e do período em questão (que se acredita ser o público-alvo deste estudo), compreender as formas de organização, os envolvidos, as responsabilidades e os efeitos de certas opções.
Compreende-se, no entanto, que a intenção das autoras seja uma apresentação desses aspectos, numa tentativa de aliciar o leitor a procurar saber mais. E, assim sendo, esta obra cumpre o propósito de funcionar como material de apoio para futuras investigações ou, quanto muito, para uma base de conhecimentos nada dispiciente. Num país com pouca memória e numa história sobre arte efémera, haver a capacidade de sintetizar um universo de informações como as autoras o fazem, é contribuir para uma discussão necessária acerca dos males teatrais. Que, para quem souber ler, podem ser eternos.
Título: O Teatro em Lisboa no tempo da Primeira República
Autores: Glória Bastos; Ana Isabel Vasconcelos
Edição: Museu Nacional do Teatro, 159 páginas
Preço: 10 €
O teatro em Lisboa no tempo da Primeira República
O Museu Nacional do Teatro dá à história do teatro português um novo contributo através da edição do 3º volume da colecção "Páginas de Teatro". Desta vez dedicado àquele que se fazia em Lisboa no tempo da Primeira República (os outros dois, que foram reeditados por ocasião deste lançamento, davam conta do teatro em Lisboa no tempo de Almeida Garrett (n.º1, Outubro 2003) e do Marquês de Pombal (nº 2, Março 2004)).
O estudo de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos procura uma leitura da história do teatro centrando-se menos na dramaturgia e na biografia dos actores, e mais em aspectos de organização, seja ela teatral ou social. Nesse aspecto, distancia-se das outras histórias já feitas (por exemplo, Luís Francisco Rebello, Duarte Ivo Cruz, José Oliveira Barata) e oferece um complemento sem conotações pejorativas. Ainda que Duarte Ivo Cruz recuse, no prefácio a esta obra, a ideia de complementariedade, este estudo permite anular uma certa ideia de acessório relacionada com o que acontece fora do palco. Porque, na verdade, e no período a que se reporta este ensaio (1910-1926), podemos considerar que esses factores externos contribuíram para o desenvolvimento de uma dramaturgia e permitiram o estabelecimento das bases de um teatro em português para todo o século XX.
A obra apresenta-se com a vontade de propor uma viagem que seja o mais abrangente possível. Esse aspecto é bastante meritório já que resgata uma série de questões fundamentais para se compreender as escolhas que compõem a história do teatro em Portugal. O trabalho de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos apela ao ultrapassar de um "preconceito teatral" existente que insiste no destaque de um ou dois aspectos do conjunto de práticas teatrais: quase sempre a dramaturgia e o papel dos actores. Não querendo, naturalmente, recusar a importância fundamental para a fixação de uma história destes aspectos, convém perceber (como as autoras o fazem) que o espectáculo teatral não surje "do nada". Antes é o resultado de um conjunto de escolhas e opções ou, se quisermos, de soluções. Sobretudo num período como o que aqui é tratado.
Falamos de um espaço temporal pleno de influências artísticas, mudanças comportamentais e sociais e definição de novos valores. E o que este ensaio provoca é uma leitura sobre o teatro "quer na sua vertente de ritual social quer como objecto de consumo". Mesmo que quando nos reportemos à prática não se sintam "cortes significativos" com a mudança de regime ou assistamos, num nível dramatúrgico "a um compromisso, só na aparência paradoxal, entre a sensibilidade romântica e uma estética naturalista" (p.11).
Aquilo a que as autoras chamam de "aspectos curiosos" não são mais que um devolver ao teatro a sua definição fundamental: um conjunto de práticas, técnicas, aspectos e circunstâncias que integram definitivamente o fenómeno teatral numa sociedade e dela absorve o que lhe importa (ou consegue) tratar.
O livro atravessa, por isso, campos como a história de alguns edifícios, o funcionamento das instituições, a formação dos actores, a crítica, a recepção dos espectáculos, as associações de classe ou o papel dos empresários na construção de repertórios. Dá ainda conta de importantes discussões acerca do papel do Teatro Nacional e das diversas variantes dramatúrgicas do espectáculo teatral de então. Completa-se com breves biografias de alguns actores que, tendo surgido nesta data, marcaram a história do teatro em português. O livro apresenta, ainda, um conjunto fotográfico que permite um olhar interior (ainda que breve e algo pitoresco) da realidade lisboeta.
Contudo, o teatro de que Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos tratam mais demoradamente corresponde a uma fatia da intensa actividade daqueles anos. É aliás curioso que as autoras excluam do ensaio a importância do nascimento do Parque Mayer (1922), já que isso implicou, para o teatro declamado, uma reformulação, preso que ficava entre o fausto da ópera e o deslumbre provocado por alguns espectáculos de revista, que se preocupavam em dar conta de um universo próximo dos music-hall franceses e musicais ingleses. Não se referem também a todo um conjunto de denominados "teatros de 2ª ordem" (entre os quais teatros de feira, palcos fora do centro da cidade, casas com menos qualidade arquitectónica), onde muitos textos chegavam a ser experimentados, de onde saíram alguns actores que viriam a ser cabeças de cartaz dos grandes palcos (alguns deles recusando até esse passado), ou teatros que se aproximavam mais de um público iletrado.
Seria interessante uma reflexão sobre a influência do cinema na abordagem teatral. Não só ao nível cenográfico, mas também as soluções que os empresários encontravam para equilibrar as fracas receitas. Soluções essas que iam desde coisas simples como a instalação de sistemas de aquecimento nos teatros, à alternância de exibição de filmes e peças, aproveitando, assim, o facto de alguns actores poderem aparecer nos dois formatos. O marketing associado ao teatro começava a surgir de uma forma mais intensa e é importante ter em conta que estes espectáculos e estes artistas (logo a dramaturgia reconhecida e os nomes que ficaram) dependiam das receitas de bilheteira e não de subsídios. Todo um tecido social e cultural que se reflectia nas escolhas dramatúrgicas, cénicas e comportamentais dos teatros. Matérias que compõem, de forma mais rica, uma visão do período em causa.
Do conjunto de temas que a obra pretende tratar, merece destaque a abordagem ao teatro infantil, ainda que esta seja breve. Sobretudo porque o teatro infantil a que as autoras se referem pouco tem a ver com os exemplos actuais. No período da Primeira República, isso correspondia a uma "reflexão mais vasta sobre a educação, a questão do teatro como 'arte eminentemente social' e como elemento educativo, sobretudo o teatro escolar", alicerçada numa tentativa de debate "sobre o valor pedagógico do teatro para/por crianças" (p.120). Dão o exemplo do Teatro Infantil do Rossio que "nos anos imediatos à implantação da República, vê-se aparecer em cena, materializadas por crianças, os mesmos caracteres e problemáticas que a revista feita por adultos criava em simultâneo" (p.124). Esta realidade (abordada pela autora Glória Bastos em tese de doutoramente que urge editar) expressa uma noção mais lata de espectáculo e de realidade teatral, já que permite encarar uma ideia de participação colectiva na construção de um tecido pleno de ideais revolucionários. E é em aspectos como este que a obra enriquece uma história do teatro por explorar.
Podemos considerar que o trabalho de Glória Bastos e Ana Isabel Vasconcelos na pesquisa e organização de um período que não primava por uma preocupação historicista é de louvar. Sobretudo se considerarmos que o manancial de informação com que tiveram de lidar é, muitas vezes, contraditório. Contudo, esta análise ficaria enriquecida se tivessem optado pela inclusão de um glossário (sobretudo porque há termos e funções que evoluíram e que carecem de contextualização actual) ou um índice onomástico. Torna-se difícil para o leitor menos atento e desconhecedor das práticas e do período em questão (que se acredita ser o público-alvo deste estudo), compreender as formas de organização, os envolvidos, as responsabilidades e os efeitos de certas opções.
Compreende-se, no entanto, que a intenção das autoras seja uma apresentação desses aspectos, numa tentativa de aliciar o leitor a procurar saber mais. E, assim sendo, esta obra cumpre o propósito de funcionar como material de apoio para futuras investigações ou, quanto muito, para uma base de conhecimentos nada dispiciente. Num país com pouca memória e numa história sobre arte efémera, haver a capacidade de sintetizar um universo de informações como as autoras o fazem, é contribuir para uma discussão necessária acerca dos males teatrais. Que, para quem souber ler, podem ser eternos.
Título: O Teatro em Lisboa no tempo da Primeira República
Autores: Glória Bastos; Ana Isabel Vasconcelos
Edição: Museu Nacional do Teatro, 159 páginas
Preço: 10 €
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