segunda-feira, janeiro 10, 2005

O limite

Análise ao espectáculo A cabra ou Quem é Sílvia?


Cucha Carvalheiro (Fotografia de Susana Paiva)

A proposta do Teatro A Comuna leva-nos a reflectir sobre a inclusão de textos contemporâneos de projecção internacional no repertório das companhias. Para que sentido podem caminhar as estruturas e qual o contributo destes textos? Procura-se uma universalização do teatro ou aposta-se numa aproximação às realidades além-fronteiras? Como podem os textos ser pensados (e integrados) na lógica artística de uma companhia e, assim, ganhar outras leituras? Quem sabe que reflictam preocupações dos contextos onde as estruturas se inserem?

O espaço aberto que A Comuna representa (ou procura representar), permite a convivência de propostas teatrais mainstream (como é, nitidamente, o caso de A Cabra ou Quem é Sílvia?) com outras de carácter mais experimental, feitas ou não por elementos da companhia. O conjunto desses espectáculos contribui para a identificação de um espaço e de um modelo teatral. Assim, é bastante comum ouvir-se "já foste à Comuna?" ou "o que está na Comuna agora?". O espaço físico impõe-se sobre as opções artísticas e permite (mesmo que não se queira) a criação de uma realidade abstracta. Assim, é também comum ouvir-se "não esperava ver isto aqui" ou "está na linha do que têm apresentado", mesmo que não se tratem de espectáculos da companhia-residente.

Nesse sentido, o espaço A Comuna funciona como lugar de encontro de propostas nem sempre coincidentes e por vezes mesmo anacrónicas. A riqueza de um espaço desses é, ao mesmo tempo, uma aposta num mapa arriscado de relações com o público, com os outros criadores e com a própria orgânica da companhia. Portanto, quando a companhia-residente escolhe fechar o ano com um texto importado e de sucesso, que discurso está a provocar fazer? E que marcas quer deixar no seu repertório?

Podemos considerar que com A Cabra ou Quem é Sílvia?, a companhia se apropria de uma linha de pensamento que usa o teatro comercial para fazer chegar ao grande público questões que, pela sua natureza ou complexidade, encontram pouco eco noutros modos de expressão. Resgatam, assim, para o teatro, um lugar de discussão, análise e reflexão. Lugar esse que está na origem do nascimento do teatro. E que através do discurso criativo da própria companhia e dos intervenientes no espectáculo, o público terá a oportunidade de conhecer uma leitura que aponte o que atravessa e contamina um e outro universo. O do texto e o da companhia.

Não faz, por isso, qualquer sentido, a apresentação formal de um texto sem a marca impressiva de quem o trata. Importa, então, menos o que se tem, mas antes o que se faz com isso.

E no caso da peça A Cabra ou Quem é Sílvia?, estamos, nitidamente, a tratar de dois objectos singulares e cuja relação é frágil. De um lado o texto de Edward Albee e do outro a encenação de Álvaro Correia e a produção de A Comuna. Tratemos de cada um separadamente, para melhor compreendermos a sua relação.

Sente-se no texto de Edward Albee uma necessidade de reflexão sobre o lugar do homem e das suas escolhas num mundo pós-11 de Setembro. Nitidamente, é uma proposta-choque acerca do conflito entre as crenças individuais e a forma como estas se integram num padrão socialmente aceite. Que significado terá a vida de uma só pessoa e como perceber as implicações desta na vida de terceiros? No fundo, até onde vai a nossa responsabilidade nas acções dos outros?

Estas questões encontram no texto de Albee uma dimensão trágica, no sentido em que causam no espectador uma confrontação com o seu próprio percurso de vida e as escolhas nele reflectidas. E esta dimensão trágica, que claramente evoca o princípio aristotélico da utilidade do teatro e da força da palavra face a quem assiste, transforma uma banal crise familiar num conflito civilizacional. E o texto numa alavanca para a discussão dos limites, fraquezas, vontades, objectivos e certezas do homem.

Martin (Carlos Paulo) é um reputado arquitecto que aparenta uma vida normal e padronizada. Uma mulher, Stevie (Cucha Carvalheiro) que ama há mais de vinte anos, um filho (Billy, João Tempera) cuja homossexualidade já não é posta em causa por necessidade de evoluções discursivas e um círculo de amigos de onde se destaca Ross (Victor Soares), produtor de televisão que o quer entrevistar. A banalidade de Martin é composta por um conjunto de assumpções que ninguém ousaria pôr em causa. Nem o próprio Martin. Mas o reputado arquitecto, a quem foi entregue um projecto de grandes dimensões, esconde um terrível segredo. Apaixonou-se por uma cabra. Os efeitos devastadores desta revelação colocam estas personagens num jogo de equilíbrio de crenças e valores.

O que possa parecer anedótico depressa se torna numa discussão sobre os factos e as consequências destes. Sobretudo no que diz respeito ao abanão na estrutura familiar e social que esta revelação provoca. E não tanto pelo facto de se tratar de um caso de bestialidade, mas antes por se revelar, da parte de Martin, uma posição de crença e verdade na relação que estabeleceu com Sílvia. Relação essa que mais do que o completar, antes o ajuda a poder sentir-se integrado num mundo de isolamentos e estéreis individualidades. Como era a sua, antes de a conhecer. E que só com essa relação toma verdadeiro sentido.

Para Martin, importa menos a bestialidade, mas antes um certo nível de entendimento e compreensão que só um ser ingénuo, irracional, puro e em contacto com a natureza pode proporcionar a quem já tudo viu, tudo fez, tudo sentiu. Com Sílvia, Martin encontrou essa 4ª pessoa do singular. Uma conjugação gramatical que transporta as relações para mais do que uma soma das partes e que também não anula o lugar de cada um na relação. É essa a epifania a que Martin se refere. Algo de tão profundo que carece de compreensão racional. Logo, escapa às fronteiras das classificações sociais.


Carlos Paulo e João Tempera (Fotografia de Susana Paiva)

O texto de Edward Albee procura questionar a forma de envolvimento dos corpos e das almas e o aparente conflito latente. Nesse sentido, A Cabra ou Quem é Sílvia? releva-se ainda como uma proposta de leitura sobre os limites da sexualidade num mundo que se assume libertário. Qual é a última fronteira por conquistar? O que falta para o homem se tornar um santo, logo, mais perto da omnipotência? Essa que lhe permitiria chegar ao coração de cada um e, por isso, acabar com os desentendimentos, as guerras, as contradições, as tristezas... Que falta ao homem para ser Deus? Para ser o seu próprio Deus? Edward Albee não procura responder ou acertar numa ideia de verdade. Antes propõe um questionar utilizando um exemplo aparentemente grotesco. Mas ainda assim perfeitamente aceitável se não quisermos ver somente o que está à nossa frente. E isso não quer necessariamente dizer que se pratique a bestialidade. Antes que se perceba qual o nível de abstracção necessário a que um homem chegou para encontrar num ser diferente do seu, as respostas que todos lhe dizem dever ter.

A Cabra ou Quem é Sílvia?, desloca-se, assim, do palco para a plateia, tal como nas tragédias gregas. Desafia o espectador a decidir se o que vê é irreal ou antes está mais próximo do que seria de esperar. Como vivemos a nossa identidade nos limites das identidades dos outros? E o que fazemos para viver sem causar o mal? Como se vive em sociedade, se essa aparentemente vive de coisas diferentes? Onde está a linha que nos torna iguais e nos distingue? E o que fazemos com isso?

Podemos considerar que a proposta de Álvaro Correia procura acentuar a dimensão trágica do texto, no sentido em que se procede a um regresso à cena grega. Sobretudo através de referências que vão surgindo ao longo do texto, da divisão da peça em actos, ou da forma como os factos vão sendo narrados, o que propõe uma influência dessa condição essencial de uma tragédia, apontada na Poética de Aristóteles, de que tudo se deve passar na cabeça do espectador. É nesse sentido que o espectador pode funcionar como juiz, tomando a decisão de acarinhar um homem solitário ou condená-lo à ostracização.

A cena apresenta-se suspensa num estrado e com um design clean e minimalista. Quase como se fosse difícil encontrar um lugar de conforto. Os actores raramente se sentam até ao fundo das cadeiras ou do sofá e preferem atravessar o palco em linhas diagonais perfeitamente identificadas. O que, numa leitura a posteriori, é uma interessante metáfora para o desconforto interior das personagens.

Mas se o texto se apresenta como um manancial filosófico (e com uma predominância teatral fortíssima), a forma como nos é oferecido provoca um sentimento de insatisfação. A aposta numa encenação formal e clássica não ajuda à integração do espectador na sala de estar da família de Martin. Enquanto o espectáculo decorre, somos confrontados com uma frieza de ritmo e sentido que perturba essa relação de espelho que o autor pretende. Mais não seja porque sentimos que a leitura feita sobre o texto não procurou desatar os nós do espartilho que é o próprio texto. Logo, presos a uma vontade de dar a ler as posições do autor, há uma dificuldade em conseguir identificar uma marca interventiva que vá além do desenho espacial e que devolva aos actores a tridimensionalidade. Mesmo nos momentos de maior violência, como quando Stevie começa a partir a louça e a mobília. Essa vontade de explosão presente no texto não toma a sua real dimensão no corpo dos actores, mais não seja porque a proposta de regresso à forma grega de pensar o teatro, está a ser aplicada a um público que não a reconhece. Logo, distancia-se da proposta. E não pode escolher.

A Cabra ou Quem é Sílvia? é, assim, uma aposta que procura oferecer um espaço de reflexão, mas acaba por fechar o espectáculo num jogo cénico ao qual o espectador é alheio. E esse efeito de alheamento resulta nas gargalhadas que dão ao assistirem ao dilema de Martin. Que tem tudo menos vontade de rir. Afinal, ele ousou amar.


A Cabra ou Quem é Sílvia? (2003)
Teatro A Comuna, Lisboa
27 Outubro 2003 - 09 Janeiro 2004

Título Original The Goat or Who is Sylvia? Autor Edward Albee Tradução Luís Fonseca Encenação Álvaro Correia Cenografia Marta Silva Desenho de Luz Paulo Graça Figurinos Carlos Paulo Interpretação Carlos Paulo, Cucha Carvalheiro, João Tempera e Victor Soares


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