quarta-feira, janeiro 05, 2005

Baralhar e voltar a dar



O novo filme de Woody Allen, Melinda e Melinda (estreia quinta-feira), estabelece como principal linha estruturante a diversidade e ambígua proximidade da tragédia e da comédia. Uma questão de perspectiva, portanto. O próprio realizador afirmou já que a tragédia é a comédia com tempo e, neste filme, força essa teoria através de um dispositivo bastante formal e nada inovador.

Um grupo de amigos (intelectuais, certamente judeus, nova-iorquinos sem dúvida) discutem a forma como o detalhe e o pormenor podem contribuir para a construção de ficções trágicas ou cómicas, dependendo da capacidade de imaginação de cada um em re-inventar os dados que vai recolhendo no quotidiano. Assim, a entrada surpresa de uma rapariga num jantar dá azo a duas narrativas paralelas que se vão cruzando através da utilização dos mesmos espaços, ideias de personagens ou manipulação de objectos. Um jogo que enuncia uma ideia de alter-ego, ou se quisermos uma espécie de espelho borgesiano.

Contudo, aquilo que aparenta ser uma feliz recriação dos quotidianos perdidos, algo inúteis e até mesmo sufocantes de uma geração de americanos (mas sobretudo nova-iorquinos) que teve com o 11 de Setembro a percepção da sua finitude, impotência e fragilidade, depressa se torna num exercício conceptual sem grande consequência. E o que poderia caminhar para uma total abstracção, permitindo uma metáfora acerca das diversas dimensões de um facto, torna-se um objecto duplo ausente de afirmação. Ou seja, perde-se a oportunidade ambicionada no início da proposta.

Tal sucede não porque Woody Allen não esteja a fazer nada de novo, mas porque recusa a capacidade de re-invenção. Considerando que o filme evoca não só uma mistura de outros filmes de Allen, como Manhattan, As Faces de Harry e Outra Mulher - com uma dimensão teatral que explora um aprofundar de propostas aparentemente cómicas como Poderosa Afrodite ou Toda a gente diz que te amo -, bem como alude a propostas europeias (e este é um filme com um dispositivo nitidamente influenciado pelo cinema europeu, veja-se o último plano do segmento dramático) como Fumar/Não Fumar de Alain Resnais, Melinda e Melinda apresenta-se antes num registo demasiado fácil e que Woody Allen sabe de cor. Os diálogos rápidos e elaborados, a confusão das personagens, as piadas em jeito de citação cultural são tudo instrumentos que o realizador manipula como quem sabe o que faz, mas que nesta proposta apenas representam uma escolha óbvia e pouco eficaz.

Será por isso que o segmento dramático perde a sua força introspectiva e recusa a brilhante textura baça das personagens para dar espaço ao habitual Woody Allen auto-destrutivo mas catalizador. Assim, Melinda e Melinda torna-se numa proposta meramente lúdica, que deixa passar ao lado um retrato impedioso sobre a fragilidade das relações humanas e das consequências dos nossos actos, enquanto indivíduos e parte de um colectivo. Não será por acaso que a dada altura se cita a Madame Bovary ou se escuta Bartok. É que a tragédia (mesmo disfarçada de comédia), de facto, ainda é a melhor forma de se compreender o valor das coisas.


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