terça-feira, dezembro 28, 2004

O Fantasma da Ópera - observações




O filme O Fantasma da Ópera levanta algumas questões importantes sobre a relação do cinema e do teatro, bem como do papel do público enquanto receptor de objectos. Tratemos de algumas para retirar os filmes da prateleira do ver e deita fora.

Convêm esclarecer que se trata, apesar de tudo, de um filme. E um filme feito num tempo em que o cinema substituiu o teatro e as artes performativas na relação de ilusão que se estabelece com o espectador. O que quer dizer que é uma leitura sobre o espectáculo e não exactamente o espectáculo filmado. O que coloca o teatro e o cinema como artes num duelo estimulante sobre os seus limites e a capacidade de se reinventarem como artes-vivas e atentas.

Contudo, O Fantasma da Ópera-filme é profundamente teatral, até pelo efeito de ilusão que provocam os limites de descrença inerentes ao cinema. Devido, sobretudo, aos efeitos especiais que permitem tornar mais "limpo" um filme. Assim, pretende-se resgatar o espectáculo da efemeridade inerente ao teatro alicerçando-se em mecanismos que só o cinema tem acesso. Sobretudo as passagens de tempo, mudanças de cenários, elipses e sobreposições de personagens. Ou seja, torna o espectáculo mais "limpo" ou, se quisermos, liberto das dificuldades técnicas (e que impedem a rendição total do espectador) do teatro. Dá-se ao espectador o limite do que ele pode aguentar e provoca-se essa fronteira um pouco mais. É dessa fusão que nasce este objecto híbrido chamado O Fantasma da Ópera. Uma 3ª coisa, que se alicerça no teatro e no cinema para contar uma história. Tão simples quanto se quer.

Ou seja, teatro e cinema confundem-se enquanto perspectivas e distâncias, quebrando a mítica 4ª parede. Ou, se quisermos, atravessando o espelho.
E este atravessar do espelho não está acessível a todos, como aliás nos apercebemos no final quando a polícia e o público invadem a gruta do Fantasma e não vêem portas mas só escavações. Portanto, não basta querer ver. É preciso acreditar.


O cinema entra dentro deste teatro para dar conta de uma outra história. Mas ao entrar e ao pretender substituir-se ao espectador que se senta na plateia do teatro, tem que fazer operar diversos mecanismos que permitam a mesma aproximação desse espectador. E uma das formas utilizadas é através de virtuosos movimentos de câmara, a correr nas vigas da estrutura do edifício ou pelos corredores cheios de personagens. Esta realidade individualizada, contraria a visão do espectador de teatro que é forçado a apreender todos os movimentos do palco e oferece ao espectador do filme uma versão mais próxima da cena.



Para o espectador do filme, esse efeito dessa introdução é reforçado pelas repetidas vezes em que vemos o edifício onde a história decorre, como se fôssemos obrigados a contrariar a falsa história verdadeira que nos contam.Um re-centrar do espaço físico que toma o seu sentido na plateia que assiste aos espectáculos na Ópera Popular. Representam, ao mesmo tempo, o público que deveria assistir às representações, o público que vai assistir ao espectáculo O Fantasma da Ópera e ainda o público do filme.
E só uma vez é que as plateias se confundem. Curiosamente não é quando o lustre cai sobre a plateia (na versão de palco acontece noutra altura), mas quando a câmara se coloca no corredor da plateia e permite o visionamento do que se passa no palco, já na parte final do filme. Isso só acontece uma vez e não é a despropósito. É que o contrato de ilusão que se estabelece entre quem faz e quem vê não permite desvendar todos os truques inerentes a uma produção. E esta é uma história de crença. Um mundo de fantasia e enganos que têm na ópera final, Don Juan o seu opus. E que belo exemplo de enganos!

Para que público é, então, trabalhado este filme? Tratando-se claramente de uma aposta do produtor/criador (é O Fantasma da Ópera de Andrew Lloyd Webber, conforme indica o título), o filme enaltece a vertente pop do objecto teatral, mas sobretudo, reforça o conceito de ópera-rock. Ou seja, imprime ao espectáculo aspectos que o aproximam mais de um público cinematográfico e menos teatral. Mas esta leitura confronta-se com o problema dos "tempos". No teatro o tempo estende-se, mais não seja pela tridimensionalidade dos corpos dos actores, enquanto que no cinema não são permitidas essas distenções.

Mas porque os tempos do cinema e do teatro não são os mesmos, nota-se o curioso efeito de distanciação em relação ao que se passa no ecrã. E porque os públicos de hoje não sabem da importância dos musicais no cinema (uma das razões foi viverem-se tempos de guerra mundial e os estúdios procurem animar as plateias), o momento mais romântico do filme (os amantes no telhado a trocarem juras de amor e o Fantasma a jurar vingança) perde o seu sentido trágido, já que no cinema não se pode aplaudir uma interpretação. Ou seja, o público do teatro está livre de se expressar, em vez de viver num constante efeito de cheio/vazio. Por isso assiste-se à substituição de certas partes musicadas por diálogos. Mas ainda que tal transformação possa causar alguma estranheza. É forçoso notar que se trata de um filme, feito para uma audiência sedenta de ritmo, acção e envolvimento.

Coloca, portanto, o espectáculo O Fantasma da Ópera preso a um dilema: como sobreviver ao filme? Um e outro objecto são obrigados a conviver, sujeitos à comparação. O Fantasma da Ópera- filme pode ser, curiosamente, a oportunidade para o espectáculo se renovar e procurar outras plateias, que desejem regressar ao teatro para se emocionarem com o lado-vivo da história. Os que queiram perceber até onde é que os espectáculos são capazes de ir nesse constante desequilíbrio entre crença e descrença (provocação existente a partir do improviso constante que está presente na realidade teatral). Trata-se, por isso, de um duelo emocional, que obriga os dois objectos a procurarem a individualização. Ou seja, terem a capacidade de aproveitar as vantagens de uma arte sobre a outra. E, ao mesmo tempo, uma oportunidade para o espectador questionar a sua posição de agente activo na concretização dos objectos. Que é mais evidente e imediata no teatro que no cinema.

Uma das leituras mais estimulantes que O Fantasma da Ópera proporciona, se o quisermos ler não só como produto de entretenimento, é um olhar para o interior das estruturas de produção de espectáculos do final do século XIX. Ainda que possa ser uma visão romanceada e plena de superficialidades, é, também, um retrato de uma realidade que esteve na base de grande parte do teatro que proliferou na Europa.

Assim, tomemos o exemplo dos empresários, hoje chamados produtores (mesmo que existam diferenças substanciais, mas só como exemplo de comparação). Eram muitos os que se tornavam empresários (ou proprietários de teatro) por uma questão de prestígio, dinheiro (até mesmo para empregar amantes). Nesse aspecto há uma frase sintomática dita pelo Fantasma, durante toda a sequência Masquerade (um virtuoso exercício de manipulação e espelho, onde se confundem os planos de real e ficção ampliados pelo facto de se tratar de teatro no cinema que é teatro que é realidade): o lugar dos empresários é no gabinete e não nas artes.



E na verdade, o tipo de empresários que aparecem no filme cumprem uma só finalidade: a representação de um modelo que acreditava que a bilheteira estava acima de qualquer outro critério. O que permitia o alimentar de cabeças de cartaz de qualidade duvidosa (era o início do star-system e a descoberta do marketing nas artes performativas), prolongamento da carreira dos espectáculos independentemente do que se passava nos bastidores, pressões em detrimento das condições artísticas ou cedências a todo o tipo de publicidade, mesmo a pouco benéfica. E outro aspecto, o que justifica toda a sequência Masquerade, é o facto de os empresários terem por hábito apostar num baile de máscaras para a passagem de ano e carnaval, como técnica de captação de receitas fáceis. O teatro do filme, a Ópera Popular, estava fechada há alguns meses, devido aos receios pelo fantasma. Reabria, assim, em grande e com casa cheia. Já quanto ao proprietário do teatro, menino rico e sem conhecimento de causa, trata-se de um exemplo entre tantos que viam no teatro uma forma de filantropia e consideração pela sociedade.

Algumas das personagens representam atitudes e comportamentos que contribuiram para a evolução do teatro e das artes performativas. Talvez seja nesta situação que mais se sente o ponto fraco do filme. É que para lá do virtuosismo dos planos, do encanto da história, do fausto da direcção artística, sente-se que a aproximação (a introdução) à cena não traz nada de novo. E essa novidade poderia ser um aprofundar das personagens. Não num sentido retrospectivo, mas no que isso representa o assumir da ultrapassagem da bidimensionalidade das personagens-padrão. Exceptuando o caso de Miranda Richardson, que faz uma espécie de directora de cena do teatro, todos os outros se perdem no pouco que lhes é dado para defender. O caso mais notório é o de Minnie Driver que faz de primma-dona La Carlotta, num histrionismo que (ainda que historicamente correcto) é, sobretudo por ser dobrada nas partes cantadas, de insuportável descrença.

Em resumo, O Fantasma da Ópera-filme é um objecto barroco e formal. Procura trazer ao público um universo de ilusão, preenchendo-o com efeitos que só resultam porque o espectador quer acreditar neles. Ou seja, aproveita-se da vontade do espectador para dar a conhecer. O que já não é pouco. É só preciso saber ver.











1 comentário:

Anónimo disse...

odorei o fiume eo resumo