Diga trrinta e trrês. Diga. Ainda que seja uma glosa a outro filme, Marcel Proust devia pelar-se por uma correcção assim. E por isso eu percebo bem o Tiago Araújo, co-autor do blog Através dos espelhos (que bela citação borgeana), e vencedor de hoje do prémio poética do quotidiano - atribuição XXXIII, nem mais -, quando procura relação contemporânea entre a madalena do Proust e os bolos secos. Ei-lo:
Será que se comermos uma madalena e nos arrependermos logo de seguida lhe podemos chamar uma madalena arrependida? A transferência da culpa para o que é inimputável (a madalena) é um problema não suficientemente estudado pela psicologia contemporânea. Colocou-se-me pela primeira e única vez ao ler Proust; culpar uma madalena embebida em chá de tília pelas oito ou nove páginas de descrição do campanário da igreja de Combray e a recordação que as emoções do campanário da igreja de Combray provocaram num pobre miúdo a quem a mãe não beijava suficientemente ao deitar. No primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador descreve-nos como esse sabor esquecido (madalena/chá de tília) lhe despertou as recordações da infância, da adolescência e da vida adulta, que passa esse e os outros seis volumes a narrar pormenorizadamente. Tudo isto para dizer que, quando viajava no Domingo no Alfa-Pendular de regresso a Lisboa, um Compal de Tutti-Frutti, sabor que já não devia beber há muitos anos, me transportou imediatamente para uma viagem de estudo que fiz na primária. Deve ter sido a isso que Tocqueville se referia quando alertava para o perigo do declínio dos padrões de excelência nas sociedades democráticas. A madalena e o chá de tília aristocráticos foram substituídos pelo Compal de Tutti-Frutti suburbano. Mas, ao contrário de Proust, não me apetece escrever um romance a partir disto, o que apenas revela outro índicio do declínio.
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