sexta-feira, outubro 22, 2004

direito ao disparate

O Nuno já fez referência ao disparate que o jornal O Crime faz publicar esta semana, à laia de notícia.



A coisa chama a atenção. E obviamente está construída para confundir as mentes. Mas transcrevam-se alguns pedaços da bela prosa:

"Possidónio Cachapa [...] é apontado num relatório do SIS [de 2000] como uma referência literária no ambiente cultural da pedofilia em Portugal. [...] O relatório do SIS refere a existência de uma «cultura pedófila, ou se se quiser, um ambiente cultural da pedofilia», sustentado e mantido não só através de literatura e textos justificativos, como ainda por uma simbologia cuidada. E sublinha que grande parte da produção literária e ensaística favorável à pedofilia procura legitimar essa preferência [...] para além dos clássicos gregos e de outros autores estrangeiros, entre os quais os laureados com o Prémio Nobel, André Gide e Thomas Mann, o relatório do SIS cita duas obras do português nascido em Évora [...] curioso é que o primeiro destes dois livros [«A Materna Doçura»] foi financiado pelo Ministério da Cultura ao tempo em que era titular desta pasta o actual deputado socialista António [sic] Maria Carrilho. Foi-lhe atribuída uma bolsa de criação literária equivalente ao ordenado anual de um professor."



A notícia continua com um comentário de Possidónio Cachapa que afirma (e bem) que se o SIS faz a aberrante alusão é porque não leu a obra (e por consequência o jornalista do Crime). E desenvolve depois um retrato dos locais de engate (Colombo, Parque Eduardo VII) e dos preços praticados, bem como um perfil do pedófilo potuguês: ""heterossexual masculino, com idade superior a 35 anos, o gosto pelas situações de poder e de controlo sobre as pessoas, a negação do envelhecimento (que se tornou num processo traumático), homens de condição social elevada, ocupando uma posição privilegiada na sociedade, desempenhando funções frequentemente actividades que facilitam o contacto com as crianças.".

A forma como Possidónio Cachapa é descrito parece querer forçar uma correspondência com o perfil: "nasceu em 1965 [39 anos], estudou línguas e literaturas modernas e tornou-se conhecido - pelo menos em certas camadas intelectuais - como escritor, dramaturgo, argumentista e realizador".

A reportagem do jornal O Crime faz ainda um destaque bastante ambíguo que, quando lido na transversal, faz supor uma relação directa: "Bolsa literária foi suspensa". Começa assim: "A bolsa de criação literária atribuída a Possidónio Cachapa estava enquadrada na política governamental de incentivos culturais visando a descoberta de novos valores na literatura portuguesa". Ora, o que acontece é que o jornalista refere-se à suspensão da atribuição de bolsas de criação literárias atribuídas pelo IPLB. E cancelada para redifinição do modelo e não por ligação à pedofilia, como se sugere pela forma distorcida com que está construída a notícia.

Ora, se isto não é uma vergonha eu não sei o que é.
O livro de Possidónio Cachapa é um retrato agridoce de um rapaz, o Sacha, que por causa de um complexo de Édipo mal resolvido não se consegue envolver com outras mulheres por causa de incapacidade de cumprimento do modelo maternal. Está longe de ser uma obra sequer classificada como pedófila, como mais facilmente poderia ser «Lolita» do Nabokov, ou »Alice no país das maravilhas» do Caroll.

A forma como foi feita esta notícia é não só um grosseiro erro jornalístico, como uma tentativa de distorção da realidade, querendo misturar alhos com bugalhos e afastar, assim, problemas reais. A arte serve de desculpa para tudo. Até para se descobrirem pedófilos.

O melhor que Possidónio Cachapa tinha a fazer era ignorar este pedaço de lixo. Mas a coisa é tão alvitrante que não tem classificação. È mais do que ofensivo, é irresponsável, vil e cruel. Escreve o Possidónio no seu blog, Prazer Oculto:

O assunto seria ridículo se não denunciasse que muitos de nós que escrevemos, filmamos ou simplesment expressamos a nossa opinião sobre Portugal, dormimos algures, num computador do SIS. Pior: que existem pessoas no nosso país, repito, no NOSSO, o de todos, aquele que amamos apesar de tudo, que andam pelas livrarias a ver o que se escreve e a elaborar relatórios sobre a perniciosidade de alguns textos.
Em 2004. Isso é que assusta e entristece. Que classifiquem como autor a "isolar" o homem que escreveu A MONTANHA MÁGICA é de brutos; de ignorância alimar.
E quem são estes homens e mulheres que se escondem para nos espreitar? Quem os controla? Quem destrinça entre o que é opinião pessoal ou gosto da informação útil? Quem nos assegura que eles não forjam informações? Quem está a salvo deles?Que governo é este que alimenta esta gente e se compraz na leitura de INDEXS inquisitoriais?
Até quando poderemos achar que as coisas não vão voltar à podridão de um regime salazarento?
Se isto fosse um romance anterior ao século XX eu poderia fazer uma interpelação ao leitor:
"Tu, que me lês, julgas-te a salvo da lama que cai? Não o estejas, que a lama tem muitas cores e salpica quem pode, pois é essa a sua condição de lama...".

De facto, este tipo de jornalismo merece ser ignorado o mais possível. Ou talvez não. E devêssemos todos defender aquilo que ainda é válido: num país de direito não se suja o nome de alguém só porque não se tem inteligência para mais.

Senhores do SIS e do jornal O Crime: E se lessem o livro primeiro? Talvez aprendessem mais sobre as relações humanas. E deixem quem trabalha em paz.

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