Ensaio sobre o ruído
Haverá livro além da polémica, é o que pergunto acerca da barafunda Ensaio sobre a lucidez? Eu não li o livro (o que, de acordo com a ética me impediria de pronunciar sobre o caso) nem tenho intenção de ler. Nesse aspecto reconheço que sou um tanto obtuso, mas enfim... são escolhas. Agora, o que não é possível ignorar é a questão de fundo subjacente ao lançamento do livro: haverá obra literária para além da "bomba", do"choque", do "murro no estômago"? Pessoas amigas (que leram o livro além do ruído e que se chocam com o facto de eu opinar baseando-me em contextos e reacções) têm-me, repetidamente, dito que sim, o livro existe, ultrapassa até as posições do autor, as contextualizações são perniciosas e até que retiram, ao livro, a sua verdadeira força.
Eu não tenho por certa a ideia de que José Saramago seja mais do que um teórico-ensaísta a fazer as vezes de romancista, sobretudo nos seus últimos livros, em que a vertente da condição humana é mais explorada, em detrimento de outros aspectos, se quisermos, em que o protagonista não é um exemplo, uma característica, um modelo. No entanto, o que se espera de um escritor (asseguram-me como se este não fosse livre e espontâneo) é que reflicta exactamente sobre a condição humana, em particular a do seu tempo. Saramago, nos seus longos discursos, tenderá mais a pensar sobre o futuro do homem do que a discutir o presente, ainda que parta desse presente (ou de um conjunto de presentes por ele definidos como essenciais) . Dizem-me, ainda, que é o que se espera de um Nobel, que não fale para o seu país, mas para o mundo (deve ser por isso que Saramago esclarece, a lúcidas páginas tantas, que aos portugueses nunca tinha acontecido tamanho "erro"). Mas neste caso, eu ainda sou dos que preferem os que recusam o Nobel.
Nas acesas discussões que tenho tido acerca do Ensaio sobre a Lucidez (eu do lado da barricada de quem só leu reacções, eles com o autocolante a anunciar que conseguiram achar o livro atrás do ruído), têm surgido, não tão amiúde quantro eles queriam, uma tendência e um resvalar para essas mesmas questões paralelas: pode aceder-se a um objecto, quando ele está intrinsecamente contextualizado? Há quem ache que sim, eu, por outro lado, considero que recusar-se a leitura dos contextos é não aceder ao objecto completo. Há, contudo, a noção, de que a arte (ainda que não salve o mundo) contribui para um abrir de olhos, uma maior capacidade de atenção para o que nos rodeia. O que nos levaria, de novo, à questão dos contextos. É, ou não, um reflexo dos tempos, este livro? E analisado de acordo com esses mesmos tempos? E apresentado em altura tão propícia (pré-campanha - argumento demagógico, dizem-me -, 25 de Abril, imposição de regimes livres no oriente, ...)
Entre as diversas questões que se têm colocado, a mais consensual é a que defende que o voto em branco, por si só, é um voto inútil, dadas as múltiplas interpretações nele incluídas. Ora, a questão do voto em branco - problema maior de Saramago (diria eu) / das personagens do livro (diriam eles) - não está, de todo, desligada de uma ideia de desresponsabilização das elites (conforme defendia, há meses atrás, em editorial lúcido José Manuel Fernandes) que se alastra para as restantes classes. O que hoje se assiste, e que Saramago defende estar relacionado com a sobranceria dos políticos face ao poder que lhes foi consignado - e, portanto, não abandonado - é a um lento abandonar das funções subjacentes a todos e a cada um de nós, enquanto cidadãos adultos, responsáveis, conscientes, íntegros... logo, lúcidos. A questão (tão velha e vazia como a do ovo e da galinha) é saber onde começou a culpa de tal situação?
Entre diversos argumentos, aquilo que estes meus amigos defendem, acintadamente, é um regresso à ideia de livro como objecto que coloca questões e questões essas que têm um relexo individual, mais do que universal. No fundo, parece-me, um regresso à velha máxima de Kennedy, ask not what your country can do for you, but what can you do for your country, mas agora em versão egocêntrica (no sentido positivo da palavra, entenda-se). Não lhes interessa o ruído ou o facto da direita ter recebido este livro com melhores mãos que a esquerda. Muito menos lhes interessa saber que foi o próprio autor a colocar a tónica no discurso político e a fazer deste livro um lugar de reflexão acerca do estado das coisas. Insistem, mesmo que o autor não queira, em ler o livro. Assim mesmo, ler o livro comme il faut. Terão eles razão?
Que legitimidade temos nós em nos substituirmos ao autor nessa função? Que razões encontramos nós, maiores que a própria polémica, para o fazer? Podemos mesmo viver sem a contextualização? Saramago-autor é maior que Saramago-politólogo, defensor de causas duvidosas, auto-vítima cultural, Nobel ambíguo?
Pelo que me diz respeito, o que não me leva a ler este livro do Saramago, ou qualquer outro, não se prende com questões de pontuação ou outros apêndices, mas pelo facto de não conseguir abrir os olhos no meio de tanta poeira. Por não encontrar o livro. Há-o, dizem-me.
Mas depois eu penso no que este almoço com Durão Barroso pode significar (nesse ignóbil pedido de desculpas - pergunto-me se Saramago alguma vez pediu desculpa pelas perseguições a que foram votados muitos apolíticos após a queda do regime fascista em Portugal) e não entendo como se pode ver Saramago como um proscrito, um renegado, um apátrida. Vasco Pulido Valente dixit, hoje ao Diário de Notícias que não há como sermos perseguidos para a nossa obra ser reconhecida e que este "erro" fez mais pela carreira e pelo Nobel que todos os outros (depois penso nos discursos de que a arte não se deve misturar com a política, e que os artistas não se devem deixar reconhecer pelo Estado e ainda do que Cavaco Silva assume neste segundo volume autobiográfico acerca da relação políticos/artistas e de que como estes, porque ficam para a história e são imprevisíveis, convém saber com quem se pode contar). Nisto, até alguns desses meus amigos concordam. "Memorial do Convento" não é um livro brilhante. Eu só li o que me impingiram, e confesso que também não apreciei. A bem da verdade, José Saramago não foi ofendido de maneira nenhuma. Se calhar, se perdesse o prémio ia dizer que não tinham feito a promoção suficiente, ou então que o júri o tinha ostracizado. Pelo facto de não ter entrado a concurso, pode sempre apelar-se à especulação. O livro continuou nos manuais escolares, vende imenso, é citado, traduzido, adaptado, reconhecido e admirado. Bem como todos os outros. E se não houvesse polémica, haveria tanto Saramago? Haveria o peso de cada intervenção?
Entre o forte ataque à censura posta na questão e a irrelevância de um prémio, todos (eu e esses meus amigos) concordamos que há livros e há livros. Só não concordamos que uns livros devam ser lidos dentro de contextos e outros não precisem dele. "Ensaio sobre a Lucidez", precisa, efectivamente, de toda a polémica e de toda a contextualização. Caso contrário, segundo percebi de leituras críticas, não é mais que um exercício de ficção científica.
Mas repito, eu não li o livro.
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