terça-feira, março 23, 2004

Ainda o dia da árvore e da poesia

A Sombra

Se o homem fosse uma árvore, seria diferente de todas as restantes, dado que
é no centro do seu corpo, e não na extremidade, que se encontram as raízes.
Refiro-me, evidentemente, ao coração, esse órgão a partir do qual ganham
sentido as outras partes, sendo indubitavelmente a pele o que no corpo
corresponde às folhas.
Taqlvez pareça insólito trazer dentro de si, escondidas no âmago, as raízes,
em lugar de as espetar na terra. De tal modo a esta se associa a ideia de
raiz que quase somos compelidos a pensar que o coração é subterrâneo, que
entre ele e o que do nosso corpo vemos há uma linha divisória, uma
demarcação correspondente àquela outra, horizontal, que habitualmente
representa o solo.
Importa, na verdade, salientar que, se entre a pele e o coração, como entre
as folhas e a raiz, parece ao mesmo tempo haver um traço de união que o
tronco, por seu turno, configura, tal união, que além do mais esconde o
instransponível hiato que os separa, é menos real do que aparente. Pense-se
no fosso que nos jardins zoológicos há entre as feras e as pessoas e
ter-se-à uma ideia desse abismo.
O que é que neste caso são as feras - a pele ou o coração - é que é talvez
difícil de dizer. De tal modo às vezes é frondoso o coração que toda a pele
se acolhe à sua sombra.

Luis Miguel Nava in O Céu Sobre as Entranhas (1989)

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