sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Rapariga com brinco de pérola


Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.

Pintura (Ferreira Gullar)


Há uma certa luz que nos invade, no espaço que nós invadimos. Uma luz que tem música, cheiro, sabor, sentido, forma... Há uma luz imensa que nos enche e que reconhecemos como quando nos vemos no espelho; uma luz distante e, ao mesmo tempo, que nos esmaga, como se nos obrigasse a respirar menos, para ocuparmos menos espaço; uma luz cheia; uma luz viva. Há uma luz que é tudo, tão silenciosa quanto discreta. Uma luz que sempre esteve lá, mas que nós já não vamos ver. Uma luz divina.

Falo da luz de Rapariga com brinco de pérola porque é dela que nos recordamos quando saímos do filme e é nela que reparamos desde o primeiro momento. Na verdade, quase que poderíamos arriscar afirmar que o filme de Peter Webber pouco mais faz que nos ofertar um pouco dessa luz e tanto assim é que o filme parece fundir-se na escuridão do excesso do peso que a luz encerra. Figurinos, adereços, paisagens, personagens, música... tudo é levado ao extremo de dela partir e a ela regressar. Pouco mais sobra deste filme. Não há personagens reprimidos, há personagens esmagados contra o peso de uma intenção – as personagens são esboços já de si distantes, pois tratam-se de especulações. Não há figurinos, há tons mais ou menos destacados e organizados, tal como os adereços, numa escala gradativa de tonalidades representativas e facilmente identificáveis – a escuridão da cave, a penumbra quente da cozinha, o pastel do tédio dos quartos e o excesso do estúdio, mais perto do céu, mais perto de Deus.

A biografia ficcionada do quadro de Vermeer deixa de existir para nos mostrarem um tratado da bela iluminação para cinema a fazer as vezes de um naturalismo exacerbado e até oco. A anedota em que se transforma o filme, passado o encanto de vermos a luz a carregá-lo às costas, contraria a intenção do próprio Vermeer que, no entender dos especialistas, renunciou às naturezas – mortas compostas e deu-lhes a vida cristalizando momentos. Daí tudo nos parecer passível de ser um quadro. Daí a originalidade de Vermeer voltar a ser anedota nas mãos de quem mais não viu que a luz. A luz pode ser muita coisa, mas não é, com certeza, tudo. E não é, sobretudo, a desinspiração, o enfado, a estética pela estética...

O problema maior do filme de Peter Webber é ter acreditado que bastaria recriar cenograficamente o ambiente – só lá falta o cheiro – para nos fazer entrar dentro do universo da Holanda do século XVII. Como exemplo de como a pintura pode servir o cinema, cite-se “A Inglesa e o Duque” de Eric Rohmer, que faz dos quadros cenários e das personagens objectos pintados. Mas esses existem, aqui não. Aqui, cada gesto é um possível quadro; cada frase um gesto. De um gesto ao outro vai a distância de uma pincelada de Vermeer. Tenho, para mim, que Vermeer seria mais acutilante que a representação que dele fazem neste filme. Basta olhar para o rasgar de olhar que a sua pintura oferece sobre o quotidiano; como de repente, estamos lá dentro, somos nós, estivemos ali, estamos ali. Neste filme, a escancarada porta assusta-nos porque ameaça prender-nos. Nos quadros de Vermeer nós sabemos que há uma acção, um movimento, uma intenção. Aqui, resume-se tudo à contemplação. E o olhar, esse, perdeu-se há muito para outros sentidos.

Rapariga com brinco de pérola é, em suma, um fraco filme com potencialidades não exploradas. Há um momento em que Griet (Scarlett Johansson) pergunta à mulher de Vermeer se deve abrir as janelas, pois, se o fizer, a luz do estúdio será alterada. A resposta positiva da mulher do pintor é o mesmo sinal negativo que o realizador nos dá. A invasão do espaço sagrado da concepção foi violenta, abrupta e disruptiva. De facto, a luz será alterada, os quadros não serão mais os mesmos, as representações serão mais expostas. E era na penumbra do conhecimento que gostaríamos de ter ficado. Não percebeu que gostaríamos de ter percebido mais, de ter amado mais, de ter gostado mais. Gostaríamos de ter percebido, amado e gostado mais sim se, a entrada nos quadros não tivesse sido pelo aspecto mais gratuito, fácil e óbvio: a necessidade, aqui, não aguça o engenho. Antes o trava. E a descoberta dos pormenores nos quadros de Vermeer faz-se numa escalada de luz, também ela, ganha com sacrifício e atenção. Quanto mais olharmos mais vemos. Aqui, quanto mais olhamos, menos vezes abrimos os olhos, porque a vontade, o sonho e o desejo é mergulhar, sem mãos, ajuda ou apoio nos quadros mortos que carregam vivos.

No final do filme, Griet regressa ao ponto de partida depois de ter visto a luz. Nós, nunca saímos do mesmo sítio. A luz não se explica, sente-se.

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