sexta-feira, outubro 31, 2003

Leituras (o texto de Felícia Cabrita em versão reduzida e telenoveleira)

A propósito de um post escrito anteriormente, aqui fica a história.Depois respondo.

Ora, a questão começa logo na forma como a história é apresentada. Para quem não leu a reportagem de Felícia Cabrita no Expresso, trata-se da vida de um casal de homossexuais que têm a seu encargo a educação de um miúdo, sendo que um deles é o pai. O retracto que a jornalista traça, bate todos os pontos para agradar a quem gosta de dramas telenovelescos e a apelar à desgraça.

Senão vejamos: Rui, tinha 15 anos quando percebeu que era «diferente» (logo a palavra «diferente» causa-me urticária. Diferente em quê? Em que lugar vem a sexualidade na definição de uma personalidade?), «era um adolescente incapaz de exercer a dissimulação.» que descobriu nos bares gay que fazia parte da «espécie» ( «espécie?») e sobretudo, nos shows de travestis uma vocação e um sonho («Aquilo era como um conto da Cinderela, aquelas roupas, as luzes, os artistas deslumbravam-me.», diz a determinada altura). E, na pista de dança, cruza olhares com - conta-nos a jornalista (acredito que baseada nas palavras dos então futuros amantes) – um homem que lhe «ofereceu-lhe um copo. José Luís, mais velho dez anos, transmitia-lhe confiança e, levados por um impulso amoroso, trocam as histórias das suas vidas. Forma tradicional de se começar um romance.».

Ainda antes de se entregarem às devidas «incandescências da carne», é preciso saber-se que tal encontro deriva do facto das «peripécias da vida, que transportam sempre mel e vinagre» chamarem os homens (imagino que aqui se possa incluir qualquer tipo de relação). O feliz casal começa uma vida a dois. «Enquanto o companheiro parte para a lide diária, o jovem confronta-se com a vida doméstica. Arruma a casa e trata das refeições.» Mas, «José Luís via-o [ao Rui] definhar (...) e consegue inserir o namorado no mundo do transformismo. (...) Correram mundo, ganharam mãos cheias de dinheiro que esbanjaram em luxos, porque fazer previsões do futuro é sempre uma maçada. (...) [Rui] 20 anos mais novo, uma figura delicada, envolta em lantejoulas e plumas, no boneco de Shirley Bassey. Ser travesti foi a primeira e única coisa que sempre quis ser. Adorava estar no palco, imitar pessoas. Sempre se varia.» O show tinha o abençoado título de «A Sorte do Azar».

Mas se tudo podia piorar, o que se segue, em nada deve ao melhor estilo Rendelliano. Incompleto com a relação que tinha, o mais velho dos dois, engravida uma rapariga (Vanda, de 17 anos, sua bailarina no show) que acaba morta em Espanha, à facada, uns anos depois. É dessa mulher que anos antes havia nascido o Bruno, hoje com 13, sem que o verdadeiro pai assumisse o feito e o amante se tivesse proposto para cuidar da criança, até ao momento em que a criança teve que ser registrada e a verdade se esclareceu. («de repente houve um corte», esclarece-nos o enganado Rui.) À falta de desejo da jovem rapariga de ser mãe, explica-nos Felícia Cabrita, que o gesto dos dois homens se encontra justificado pelo facto de que «dentro das normas da Natureza, estava-lhes vedado serem pais» («Normas»?). Em suma, pelo amor, «o casal foi tão longe quanto pôde, até driblou a lei tirânica da Natureza que o impedia de ter filhos.» («tirania», portanto? Hum...)

Mas, o amor também tem dias e há aqueles dias em que acaba. («O amor é imprevisível e um dia desapareceu como se tivesse encontrado uma brecha no ar.», alerta-nos Felícia Cabrita) Acabou o amor, mas ficou a criança. Que foi o grande ponto de apoio para Rui [o mais novo, o enganado], quando este descobre que «uma erupção esquisita apodera-se do seu rosto.(...) O resultado das análises tem três letras e representa a maior tragédia que o novo mundo criou: HIV.(...) Rui tinha a sensação de que alguma coisa no seu copo apodrecia, as febres tiravam-lhe o tino.». «O mundo é mesmo assim, com jardins ocultos e ciladas. Ninguém escapa às suas armadilhas.», conclui a jornalista em suspiro profundo e lágrima a despontar, digo eu.

Hoje, o miúdo Bruno «conhece a sua via de trás para a frente, pensa com a agilidade de quem foi criado sem preconceitos e encolhe os ombros num sinal de desdém quando intrusos lhe colocam certas questões: «Claro que sou feliz, os meus pais são homossexuais mas nunca fui gozado por isso, hoje as pessoas não ligam a essas parvoíces». Há coisas que só uma criança pode dizer, independentemente da razoabilidade (...) Bruno apenas não gosta de abordar um tema: a homossexualidade. (...) E reage com insolência. Afinal, não é com ele que se tem de falar dessas tretas: «Vivemos numa sociedade livre, é a vida particular das pessoas, ninguém tem nada a ver com isso.».»
Em fotografia familiar, resistente e integrados, a família apresentada na capa do Expresso deste sábado que passou levanta várias questões, razão pela qual a urticária ainda não me passou.

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