terça-feira, julho 03, 2007

Meg Stuart em Lisboa até dia 13

Começa hoje no CCB, com a estreia nacional de BLESSED, o ciclo que o Teatro Camões, a Culturgest e o CCB organizam em torno do trabalho da coreógrafa norte-americana Meg Stuart. A OBSCENA#5 dedica-lhe extenso dossier com críticas às peças e aos filmes, perfil e bibliografia. Reproduz-se abaixo o texto saído no Ípsilon da passada sexta-feira. Pode ainda ler aqui uma entrevista à coreógrafa.

O corpo, lugar de acção

“Por onde deverá alguém começar uma abordagem ao trabalho de Meg Stuart e da Damaged Goods [a sua produtora], mas uma que saiba apreciar a multiplicidade de imagens e ideias nele presente? Uma abordagem que não seja histórica nem conceba uma teoria filosófica interna e intensa nem queira a criação de um discurso coerente?”

As perguntas são de Jeroen Peteers, crítico e dramaturgista belga, colaborador regular da coreógrafa Meg Stuart, e abriam o texto do programa do espectáculo Highway 101, um projecto em seis partes iniciado em 2000 e que passou por várias cidades europeias. A exposição da dificuldade era-lhe cara porque havia sido na qualidade de observador que se tinha colocado desde cedo. E, então, avisava: “É que a teoria já acontece e de forma muito óbvia, enquanto o trabalho circula, exactamente, na oposição de forças”. Nesse espectáculo havia uma frase recorrente em Meg Stuart que simboliza bem este desapego da coreógrafa à forma: “Não me sinto uma presença fixa e finita. Destaco do seu contexto partes da minha identidade”.

É a partir desta “terra de ninguém” que podemos começar a perceber o trabalho de Stuart, radicada na Europa desde o início da década de 90, mais exactamente em Bruxelas e desde há dois anos a residir artisticamente em Berlim, na Volksbühne – o que desde logo amplia, e refaz, a ideia que temos de territorialidade e identificação, mas também desagrega, paradoxalmente o postulado de Peteers.

Das perguntas o próprio partia depois para uma desestruturação do trabalho de Stuart assente em palavras-chave que, se eram presenças determinantes nesse ciclo deambulatório, também se estendem e vincam na totalidade do percurso desta coreógrafa A saber: figura/espaço, hiper-realismo, in situ [no local], intimidade, paisagem, meio/veículo, mutação, omnipresença, sobre-exposição, privado, processo, repetição, estrada/caminho, vigilância e espectador.

Mais do que simples linhas que unem os espectáculos, tratamos aqui de um programa de intervenção pública que quer ver aplicada uma função no corpo, no gesto e na consequência. Se é possível encontrá-las, também é possível ler o trabalho de Meg Stuart como uma tentativa de libertação desses agrilhoamentos teóricos, tanto internos como externos.

O ciclo que veremos em Lisboa dá bem conta dessa (necessária) instabilidade. It’s not funny (2006) assenta na efemeridade da intervenção pública e alerta para as várias demagogias que criamos para nos protegermos do outro. Blessed (Março 2007) recentra a nossa fragilidade humana na tragédia e na busca de uma dignidade. Maybe Forever (Maio 2007) propõe um novo olhar sobre o íntimo, mas um que necessite e reclame a presença do outro, um cúmplice. Sand Table (2000) obriga-nos a desejar o inalcançável, a procurar o conteúdo em detrimento da forma. Auf den Tisch! (a primeira apresentação deste programa de improvisação colectiva data de 2005) quer regressar a uma inocência coreográfica, à partilha de saberes e experiências sem a pressão de um discurso.

É a própria coreógrafa que, em conversa com o Ípsilon, diz que “a dança tem múltiplas camadas, diversos níveis de interpretação. Não acho que seja muito interessante fixar essas interpretações de modo a que sejam identificáveis e se fechem em si mesmas. Importa-me a qualidade do ‘como’. E esse ‘como’ chegará de diversas formas a quem vê. Há sempre mudanças que são dependentes de uma série de factores”.

É verdade que o facto de ter encontrado na Europa as condições que nunca teve, ou teria, nos Estados Unidos da América, de onde é originária, a fez aproximar-se de uma consciência cívica mais complexa, mais culpada e, provavelmente, menos prática. Mas não a impediu, certamente, de conceber uma cena activa e atenta ao modo como o corpo deve comportar-se enquanto organismo vivo e actual. Jean-Marc Adolphe, editor da revista francesa Mouvement, chamou à dança que ela faz uma “dança do desastre”, epíteto que a coreógrafa só concebe porque lhe interessa “explorar os efeitos daquilo que me rodeia neste meu corpo que é um receptáculo e que também participa na construção da realidade. Somos nós que criamos o que nos rodeia”.

Num ensaio sobre Visitors Only (2001), publicado em 2003 na revista brasileira Art, os investigadores Rogério Moura e Ciane Fernandes, iam, naturalmente, mais longe, numa exploração dramatúrgica mais aberta e mais actual. Diziam: “Num tempo onde homens-bomba e seus corpocídios mobilizam exércitos inteiros, aumentando o esfacelamento das fronteiras e extinguindo por vez o significado de Estado e Nação e mesmo de cultura, é de se perguntar por quanto tempo o corpo e o ser que nele habita ainda portarão a missão de unir, de celebrar”. Meg Stuart não celebra, antes confronta: “acho sobretudo que lido com actos e consequências. Eu quebro o copo, reconheço que o fiz, há uma reacção a isso. Ou limpo ou ignoro. E é sempre sobre isso”, diz-nos.

E por isso é que é importante que nos foquemos na dificuldade sugerida por Peteers que ao pensar no trabalho de Stuart defendeu a ideia de que este se estabelecia por “degraus de falsidade”. Ou seja, hipóteses de representação que nos levam a questionar a importância do que vemos. Em peças como Visitors Only, Replacement (2003) ou It’s not funny – exemplos maiores de um período pontuado por colaborações diversas, várias encomendas e muitas improvisações –, verifica-se que para Meg Stuart a noção de construção de uma coreografia está dependente do modo como esta deve representar “o” momento da criação e, ao mesmo tempo, abrir uma brecha na realidade fazendo confundir os planos do verdadeiro e do falso. A coreógrafa garante que “não há uma linha directa para a cabeça das pessoas” e, muitas vezes, crê estar num diálogo consigo mesma.

Nesse sentido It’s not funny leva mais longe essa pesquisa de evidente confronto entre realidade e ficção, entre criação e interpretação, entre acção e sentido, recuperando o que Jeroen Peteers questionava já em Visitors Only: “Porque é que consideramos falsa uma casa só porque foi construída num teatro? E haverá mesmo um original ou não passa tudo de uma construção que fazemos mentalmente?”

Há no seu trabalho um desejo de percepção do corpo, dos seus limites e das suas margens, tendo vindo a construir ao longo do tempo um perfil coreográfico que se vai ajustando, seja por via do movimento, da música, das artes plásticas ou visuais, da filosofia ou do teatro. Não estamos longe dos pressupostos clássicos nos quais o corpo estava no centro da acção, servindo tanto de elemento concentrador como repulsor. Mas, indo mais longe na reformulação da tradição e, muito em particular, ainda mais longe nas rupturas provocadas pelos movimentos das novas danças europeias – dos quais ela foi cúmplice activa e interveniente implicada –, propõe-nos um corpo essencialmente efémero. Um que se esgote no momento da acção porque só nesse momento importa agir. E será por isso que Jeroen Peteers nos alerta para uma certa impossibilidade histórica na abordagem ao seu trabalho.

É que ao contrário de tantos outros, este não é um discurso luminoso, de exposição celebratória, de ego assumido, com desejo de expressão futura. Está a um outro nível, mais fundo, subterrâneo e intrinsecamente ligado à condição trágica do ser humano: a de se ser responsável – e por isso, arrisco, sem distância –, pelo modo como precisamos encontrar uma solução de convivência comum. Meg Stuart é, assim, uma coreógrafa profundamente crente na busca de uma solução. Pode recusar o estatuto de líder mas há muito poucos a saberem guiar-nos tão bem quanto ela.

[texto publicado no Ípsilon - 29 Junho 07]

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