A era do sangue e esperma acabou
"German theatre is a pigsty where the people spend their time puking, pissing and drooling. Or at least that's what last year's debate about 'blood and sperm' theatre would have had us believe," comments Christine Dössel, theatre critic and juror at this year's Theatertreffen in Berlin. "If you believe reports, our theatre is home to barbarous, berserk directors living out their perverse obsessions and bathing their actor-minions in blood, shit and sperm, and where defenceless critics have their notepads torn from their hands (more here). But even at the time this alarmism was nothing more than threadbare. And one look at the plays selected for this year's Theatertreffen, which starts on May 5, shows it's a thing of the past. What's all this talk of a 'theatre of disgust' (Ekeltheater)? 'Theatre of luxury' (Edeltheater) would be the better term for the unmistakable tendency to glamour, entertainment and elegance reflected in the ten most 'noteworthy' theatrical productions selected this year."
Será mesmo? Eis um excerto do ensaio que apresentei na passada segunda-feira, 23 de Abril, no âmbito do ciclo de conferências Pensar a Criação Contemporânea.
"Hoje, aquilo a que assistimos nos palcos reclama uma autonomia da realidade, que pode conduzir a representações viscerais da sociedade, em peças que provocam epidérmicas reacções de repúdio, como a textos que esventram o cânone dramático. Pelo meio, as pessoas tendem a dizer que não se reconhecem na decadência social e moral mostrada pela dramaturgia. Mas não será que, simplesmente, não a querem ver?
É nessa linha de conflito que têm seguido várias correntes dramatúrgicas de origem europeia, em particular, porque mais relevante e influente, a inglesa in yer face theatre (ou, o teatro atirado à tua cara, que em português traduziríamos por “teatro-murro-no-estômago”), –, mas também uma outra, no eixo Alemanha-Áustria-Polónia chamada, convenientemente, blood and sperm (sangue e esperma), de características semelhantes. Trabalhos que têm demonstrado um mundo negro, deprimido, sem salvação, ansioso pelo apocalipse ou a comportar-se como se estivéssemos já no interior desse apocalipse. Mas não estaremos mesmo?
Nomes como os dos autores e encenadores Mark Ravenhill, Sarah Kane, Martin Crimp, David Harrower, Conor McPherson, Mark O’Rowe ou Max Stanfford-Clark e companhias como a Plaines Plough e a Out of Joint vêm insistindo em dramatizar a miséria humana, o abuso sexual, o alcoolismo, a droga, o consumismo, a acção política mas também um desprezo enorme pela intervenção cívica, o uso do vernáculo e o retrato da violência física, a sexualidade explícita, os confrontos ideológicos, o falhanço do poderio masculino e, por consequência, a impotência e a falência do homem como referência moral, a vitimização permanente e a descrença absoluta. Chamam-lhe zeitgeist, ou “o espírito do tempo”. O que me leva a perguntar: que mundo estaremos nós a produzir para que o teatro nos devolva um reflexo tão negro? Mas não terá sido sempre assim, desde os gregos?
Uma crítica búlgara, Kalina Stefanova, acha que não; e é peremptória: “o que se encontra por detrás da Nova Dramaturgia Europeia é uma máquina de marketing que trabalha na perfeição (posta a funcionar precisamente por aqueles que de outro modo demonstraram desprezo pelo comercial!). A tendência elimina as últimas regras existentes de propriedade em palco, provocando desse modo um interesse despertado pelo sensacionalismo garantido. Por fim, é exactamente a demagogia política e estética que desimpede o caminho para decretar a tendência (quem estiver “contra” é “conservador e de direita”!)”.
Jorge Silva Melo, um encenador e dramaturgo baudeleriano, escreveu recentemente, num artigo no jornal Público, uma espécie de resposta. Referiu a inutilidade daquilo que se ensina à “mestrada crítica, militantemente iletrada”, fazendo crer que se trata de um problema de académicos e teóricos. Passará a solução, então, por uma reformulação dos clássicos? Ainda Silva Melo, citado num outro artigo: “para se chegar a um determinado estatuto, é preciso encenar Shakespeare”. Que é “como pôr uma gravata”. Um clássico é um clássico é um clássico. De facto. Funciona sempre, com maior ou menor aproximação à realidade. Usando Shakespeare como exemplo, e nas palavras de Maria Helena Serôdio, hoje “há um tipo de vida que, de repente, torna contemporâneas algumas coisas atrozes das peças de Shakespeare, que pareciam inverosímeis”. Ponto. Os valores, a honra, a violência, surgem-nos hoje como quase justificados pelo estado actual das coisas – e o teatro contemporâneo o que haveria de mostrar? O in yer face theatre é, afinal, a tragédia grega dos tempos modernos, é o teatro isabelino dos dias de hoje, é a angústia beckettiana do século XXI. Falta saber durante quanto tempo continuará esse teatro radical a ser representado…
O problema de Shakespeare ou dos textos gregos não é a sua validade e pertinência, mas uma impossibilidade prática: mais facilmente recusamos esses autores, porque nos exigem uma reflexão mais distante e abstracta, que abraçamos os contemporâneos. Mesmo se não lhes damos o benefício da dúvida. Nas peças do in yer face theatre, cuja qualidade é aliás bastante irregular, podemos achar que aquela representação do mundo parece caricatural; mas é-nos fácil aceitar que a sociedade em que vivemos, no essencial e no superficial, é assim. Já Shakespeare e os gregos pedem-nos que concebamos a vida enquanto percurso moralizador, coisa para a qual, convenhamos, não há tempo.
É possível definir o trabalho daqueles autores como parte de uma tendência no contexto cultural Europeu, especialmente depois de Hans Thies Lehmann ter chamado a todas estas movimentações “o teatro pós-dramático”, onde o drama habitual e “antigo” foi substituído por reformulações cénicas, que concebem um espectáculo onde coexistem dramaturgia, interpretação, encenação, as várias disciplinas artísticas, mas também, e sobretudo, uma projecção directa daquilo que são as referências dos espectadores – não necessariamente as dos autores. Nesse sentido, este tipo de teatro já não invoca uma moral generalizada, mas reclama acima de tudo um discurso pessoal. E, se se dirigem a cada um dos espectadores, chegando-lhes de diversas formas, não partem de certezas dos autores, mas de dúvidas que querem ser partilhadas."
Imagem: Shopping & Fucking, de Mark Ravenhill, encenação de Thomas Ostermeier
1 comentário:
Não poderia discordar mais.
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