quinta-feira, janeiro 27, 2005

A teia da aranha

(Análise ao espectáculo .mostra, encenação Maria Gil, a partir de motivos de Gao Xingjian)



A proposta de Maria Gil constrói-se a partir de uma urgência criativa e de uma necessidade de testar certas propostas junto do público e dos próprios criadores. Trata-se de permitir ao processo de criação um tempo de paragem e reflexão, contribuindo assim para o desenvolver de algo mais definido, menos "sujo" e mais próximo do que quer dizer. Chamam-lhe devise-show.

Não se tratando de um objecto definitivo, .mostra pretende, contudo, ser um objecto que valha por si e, ao mesmo tempo, ponte para outra coisa maior. Até radicalmente oposta. O que o conjunto de criadores (encenadora, dramaturgia, actores, músicos, videasta, cenógrafo, figurinista) apresenta, procura entender o significado de determinados pretextos na construção de um objecto artístico, esticando os limites desses mesmos pretextos.

Essa coisa maior é a adaptação do texto Au bord de la vie (Na Margem da Vida, tradução de Diogo Bento), do Prémio Nobel da Literatura 2000, Gao Xingjian, a acontecer no final de 2005. .mostra pretende partir não do texto em si, mas das ideias que o próprio texto sustenta. E, sobretudo, aquelas que forem ao encontro do universo pessoal e referencial da criadora e parceiros de investigação. No caso concreto, a condição da "mulher em ruptura", tema suficientemente ambíguo para permitir o barroco e a abundância, logo a necessidade desta "paragem".

Desenvolvendo-se como um exercício de manipulação textual e visual, o conjunto de proponentes testa uma reflexão sobre a influência da mulher no seu próprio quotidiano. Perceber, no fundo, o que há de si em cada gesto que faz, permitindo uma construcção a partir do interior do pensamento feminino.

Nesse sentido, o trabalho plástico de Pedro Silva obriga actores, violoncelista e público a partilharem um espaço mínimo. Espaço esse que é lugar para um discurso de auto-contemplação, como são todos os que abordam a temática do amor (seja o excesso ou a falta). O espaço da Galeria Bento Martins é assim cortado em quatro partes, divididas por um corredor branco. Sara de Castro (num registo demencialmente comovedor) serve de cicerone no seu próprio cérebro, conduzindo o espectador pelas "zonas" devidamente cenografadas. Em cada uma dessas zonas, o espectador é confrontado com estados de espírito que podem ajudar a uma definição da situação em que essa mulher se encontra. Uma situação plena de fantasmas, recorrências, alusões e memórias sobrepostas. Um universo confuso e pouco definido. Sobretudo sufocante.

Em cada um dos espaços, Pedro Silva coseu as paredes e o chão com fio vermelho, criando uma ideia de teia de aranha que pode remeter para o trabalho pictórico-libertador de Frida Kahlo, mas que está mais próximo de uma leitura feminista castradora. Assim, metaforiza-se sobre a ideia da aranha estar presa na sua própria teia. Ideia ainda presente na manipulação do texto de Gao Xingjian misturado com outros de Luíza Neto Jorge, Mário Cesariny e dos próprios criadores. O conjunto de textos que serve este devise-show assenta numa ideia de procura de um estado de equilíbrio anterior a este "ponto de ruptura"; um momento onde se pudesse reconhecer o controlo desta mulher sobre as situações, sobre os outros... sobre si mesma. No caso do texto de Gao Xingjian, a mulher em causa falava sozinha e sobre si sempre na terceira pessoa, a proposta neste espectáculo é o de dividir o discurso entre a mulher e o marido (ou o seu fantasma; ou a memória que ela têm dele), obrigando-a, assim, a um confronto com o seu próprio discurso. Transforma-se em observador e observada. É a aranha e a mosca.

É, por isso, um trabalho que reflecte uma ideia de fé e de missão, já que pressupõe-se procurar a libertação desta mulher. Algo que a salve de si mesma. Daí não ser a despropósito que a actriz esteja descalça e encaminhe os espectadores como se de uma procissão se tratasse. Sobretudo na parte final, quando se percorre o corredor branco do início, ao ritmo da canção-tema que se repetiu ao longo da apresentação.

Claramente apostando no incómodo que pode ser a excessiva proximidade entre público e intérpretes, .mostra desenvolve-se num exercício de confrontação e auto-exposição que não aparenta fuga possível. Nem para a mulher nem para os espectadores. Esteticamente envolvente, a proposta ressente-se de uma necessidade de auto-justificação, sobretudo pelo excesso de texto, que oprime os outros elementos (cenografia, figurinos, vídeo e música). E esse factor reflecte-se na forma circular e repetida em que se desenvolvem as acções em cada uma das "zonas". É possível prever-se, com antecedência o que vai acontecer.

Mas, atendendo a que é uma proposta em desenvolvimento, .mostra prenuncia um cuidado e uma fragilidade que podem tornar a aposta da encenação do texto de Gao Xingjian num objecto singular. É, para já, um bom ponto de partida.

.mostra

direcção Maria Gil apoio dramatúrgico Diogo Bento interpretação Sara de Castro e Tiago Barbosa música Marco Batista e Marina Hasselberg figurinos Catarina Varatojo cenografia Pedro Silva videasta e sonoplastia Pedro Paiva desenho e operação de luz Paulo Cunha apoio técnico Rita Trindade design gráfico Pedro Alves produção Maria Gil co-produção teatromosca

GALERIA BENTO MARTINS [Ed. Junta Freguesia Carnide] 12 Janeiro 2005 às 22h, 13, 14 e 15 Janeiro sessões às 21h e 23h Casa de Teatro de Sintra 28 Janeiro 2005 22h e 23h30


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