quinta-feira, dezembro 09, 2004

Estamos agora sós - carta aberta

O Melhor Anjo deu conta da estreia do espectáculo de André Amálio e Joana Furtado, Estamos Agora Sós, no passado dia 19 de Novembro na Casa dos Dias da Água, em Lisboa. Por absoluta falta de tempo não me foi ainda possível fazer a análise ao espectáculo. Conto fazê-la até ao final da próxima semana. Entretanto um colega de outros projectos, fez-me chegar esta carta aberta ao encenador que a seguir se reproduz. O texto vai assinado pelo Pedro Manuel.

Abrir o apetite



Antes do mais, parabéns pelo espectáculo. Gostei sobretudo das soluções cénicas da mesa como palco e plateia, da comida e da bebida como materializações do apetite e do satisfazer do apetite, das máscaras vermelhas. Gostei da comunicação (intencional?) ao imaginário fílmico de "Hannibal" e "Eyes wide shut". Gostei da estrutura dramatúrgica da encenação que estimulou a proposta meta-teatral do texto de teatro: na sua circularidade, remetendo no final toda a acção para a dimensão da memória que é, afinal, onde já se encontra nas cabeças dos espectadores, fazendo-os voltar do teatro, e esta passagem de dentro para fora do teatro é importante para a consolidação do espectáculo como objecto fechado e significante, é importante levar o espectador a voltar da realidade teatral sobretudo quando participou dela através de dispositivos tão determinantes como as máscaras, o olhar frontal entre os espectadores e, sobretudo a entrega de cada um à confiança na comida e na bebida.

Quando comer é um acto público, em público, exige-se uma entrega, confiança e também uma certa teatralidade. Depois de levar o público a essa entrega deve cuidar-se dele, não o deixar desprotegido, levá-lo pela mão. Desde há muito que em teatro há várias maneiras de agarrar o espectador, e a comida, o banquete, o banquete com bobos ou o jantar com espectáculo no Casino, é uma delas; por outro lado, há a delimitação do espaço de representação em volta da mesa e do espaço de fingimento das personagens sobre a mesa: a mesa torna-se plateia e palco e é um dispositivo cénico e cenográfico muito eficaz, cheio de possibilidades; por outro lado, ainda, julgo ter compreendido a importância das superfícies reflectoras, a chapa que cobria e forrava a banheira, e o tampo da mesa, e o espelho que precede o jogo de Merteuil e Valmont. Faz todo o sentido mas julgo que poderiam estar melhor resolvidas ao nível cenográfico e de iluminação (tal como as máscaras vermelhas, muito eficazes no processo de fingimento, participação e confiança dos espectadores).

O espaço envolvente, com as suas paredes de madeira floreada, ajuda a reforçar um ambiente passado e aristocrata (da "França Pré-Revolucionária", como insistia o nosso cicerone) mas a iluminação parecia estar pensada para uma caixa negra onde é absorvida e onde o nosso gosto está habituado artifícios luminosos. Na utilização de um espaço tão natural ao ambiente da peça, talvez a melhor solução fosse uma iluminação também "natural", talvez velas. Mas também é verdade que a proposta traz alguns aspectos artificiais que as luzes realçaram, sobretudo o carácter barroco, quase grotesco, das máscaras, a tua maquilhagem branca ou a longa extensão de cabelo da Joana. Também gostaria de outros figurinos, mais de acordo com as máscaras, talvez, no corte ou na cor (talvez se conseguisse um contraste com o corpo nu da Joana, ou com os dois corpos nus, animais). Finalmente, gostei do pão e do vinho. O fiambre, enfim, nunca fui muito apreciador, mas como não tinha jantado também o comi. Agora o vinho, belo vinho... Porque é daqueles vinhos que abre o paladar, abre o apetite. E o espectáculo é sobre isso.


Pistas para o futuro



A associação de três espectáculos num ciclo temático leva-nos mais facilmente a criar uma sequência entre os trabalhos, a compará-los, a ver uns à luz dos outros, e dos dois que vi, refiro algumas notas:
- A solenidade: neste espectáculo como em "Cartas" havia uma certa qualidade dos movimentos, do olhar, da dicção. Os actores caminham com seriedade, falam pausadamente, com a voz colocada e grave, os gestos são respirados, ora lentos ora cortados, o olhar é fixo e sem grandes variações expressivas. Em "Cartas", como na altura falámos, essa maneira de estar em cena, por vezes, dava um tom moralista ao texto e às intenções. Neste espectáculo, essa tendência está mais controlada e assim consegue-se transmitir o que realmente parece estar em causa na lentidão, na pausa, no olhar, nos passos, na respiração, e que é um sentido de solenidade, de ser solene.

- O ritual: essa solenidade leva a que os gestos e as palavras sejam, de algum modo, ritualizados, isolados da balbúrdia quotidiana. Nota-se o prazer em dizer o texto e em mover-se com solenidade, como num ritual, onde cada palavra e cada gesto importa. O sentido ritual talvez esteja presente também em dois aspectos: um, cenográfico, tentando criar ambiente e cenografias totalitárias, isto é, que integrem o espectador no espaço cénico: o chão coberto, mas todo coberto de jornais em "Cartas" e a grande mesa espelhada, grande também em altura em "Estamos agora sós". O outro aspecto é a disposição do público através da criação de um percurso, de momentos de passagem da rua para o ambiente do espectáculo, na participação do público, e na sua disposição circular, ou melhor, em torno dos actores.

- A participação do público: assim, parece-me, a solenidade da vossa maneira própria de estar em cena, associada a um sentido ritual de comunidade e partilha do momento que influencia a concepção cénica e dramatúrgica, encontram na participação dos espectadores uma exigência "lógica". A solenidade, a pausa, a intenção não sobreviveria num ambiente ruidoso e não funcionaria tão bem como num dispositivo cénico intimista. A construção da densidade dramática depende disso. E, nesse sentido, as soluções de "Estamos agora sós" parecem-me justas.

Nota final para o colega que conduz os espectadores: o espectáculo começa ali, quando ele entra na sala para anunciar o início do espectáculo e faz as recomendações. Mas o espectáculo começa ali, nota-se pela tal gravidade e rigor que ele impõe às palavras e à sua postura. O público segue-o pelas escadas, e quando chega à primeira sala serpenteia junto à parede, em fila, julgando o centro da sala como espaço cénico em vez de invadir a sala à vontade. Porque de alguma forma, o espectáculo já começou. Reparei também num pormenor. Um espectador estendeu-lhe a mão para o cumprimentar quando entrou na primeira sala.

Mas o cicerone (reparem que também eu o vejo com uma personagem) não o cumprimentou, indicando o lugar da sala para onde se devia dirigir. Não estou a fazer juízos de valor sobre o colega que me pareceu simpático, mas da sua importância no espectáculo. Porque é que ele não cumprimentou a pessoa? Talvez não a conhecesse. Ou talvez estivesse "em personagem". Acho que foi esse pequeno pormenor que me abriu o apetite a esta reflexão sobre a solenidade na vossa maneira de fazer.

Depois dizes-me a marca do vinho.

Pedro Manuel


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