De Margarida Fonseca Santos
Encenação de Helena Pimenta
Teatro Nacional D. Maria II
Até 20 Maio 2007
De vergonha em vergonha, até à derrota fatal
Que vivemos num tempo de revisionismos históricos não é novidade. E que cada vez mais esses revisionismos são disfarçados como apropriações da História em nome de estratégias pessoais, menos ainda. Mas que o Teatro Nacional, por consequência a representação directa do Estado (e deste Estado), para mais democrático, possa branquear a História em nome da eficácia dramatúrgica é coisa que eu achava não ir assistir. Inocência minha. Bastou-me ir ao D. Maria II, particularmente em noite de estreia de A Filha Rebelde, para ver o Estado de direito, da esquerda reaccionária à direita bafienta, a aplaudir de pé o novo opus cénico da gestão Carlos Fragateiro-José Manuel Castanheira a fazer as vezes de recuperação da memória.
A peça é uma versão telenovelesca da cuidada investigação de Valdemar Cruz e José Pedro Castanheira, publicada no Expresso, do lateral e muito pouco relevante fait-divers que é Annie Silva Pais, bonequinha do regime e filha do director geral da PIDE, se ter tornado passionária da causa cubana. Não me incomoda particularmente que se faça da História o que bem se achar, desde que os factos que são factos não sejam escamoteados em nome de dramaturgia que a bem da verdade nem existe. Ora, depois da redução da vida quotidiana da aborrecida burguesiazinha de Lisboa, entre a maior ou menor vigilância de Salazar, ao grau zero do retrato social, e da transformação da revolução cubana num festim social sem mácula, chegar ao fim de hora e meia de peça e ter que assistir à regeneração de Silva Pais, porque afinal o escroque sofria de profunda mágoa pelo desvio da filha, é não só ridículo como vergonhoso numa democracia saída de uma ditadura que nem coragem teve para se assumir enquanto tal, como a nossa. Que desgraça esta a de termos que pagar por estes serões para trabalhadores de esquerda, como brilhantemente designou Elisabete França no Diário de Notícias de 21/03.
Se a intenção era entreter as hostes, que se abrissem os salões do Nacional para uma noite de música cubana. Uns mojitos servidos na esplanada do Nacional – agora que o bom tempo parece de regresso – eram bem mais úteis e certamente ajudariam a que muitos dissessem o que realmente pensam desta farsa em forma de peça de teatro. Não havia necessidade de se promover a dramaturgia nacional as inconsequências desta peça, alimentada a caricaturas de personagens perdidas em fragmentos de ideias e de cenas intervalas numa lógica muito própria e nada evidente que confunde mitos com verdades. Não há pathos, não há linhas fortes, não há uma frase que fique na cabeça, nem uma ideia, um ensinamento, uma ponta de interesse por se saber, ou mesmo justificar, a verdadeira história. Nada. Apenas o vazio na imensa corrente de ar que existe entre as várias portas desenhadas por José Manuel Castanheira, entretanto também ele, e por enquanto, designado cenógrafo oficial do regime.
Que num teatro que se quer Nacional se fale da história do país, não é nem uma conquista nem um feito maior do que a obrigação, até moral, de quem o dirige. Mas nem tudo serve de desculpa. E esta filha rebelde nem de desculpa serve. Falta-lhe, entre outras coisas também elas graves, um contexto. Como explicar às gerações mais novas que estão perigosamente a esquecer que já vivemos em ditadura e que houve uma polícia política que não dava apenas um sustos? Como explicar, ainda, o que representou Silva Pais? E que efeitos a revolução cubana teve na Europa? Como se vivia naquela altura em Portugal? Que alta roda era aquela de onde a rapariguinha saiu? Mas, sobretudo, alertar todos para os perigos de nos determos somente nos fait-divers esquecendo que a História foi outra coisa.
E não há fait-divers maior do que o perpetuar de uma ideia romântica de um Che Guevara que com o tempo se tornou o ídolo pop imortalizado na fotografia do Korda e estampado em tudo quanto é revolucionário acneico de festival de verão, fazendo esquecer que foi, sobretudo, participante activo na guerrilha que tomou de assalto Cuba e ainda hoje se perpetua enquanto ditadura. Estivesse ele vivo e o que nos garantia que não era tão ou pior ditador que o outro? Ou Cuba são só as praias de Varadero, os charutos feitos por mão escrava e os longos e patéticos discursos do moribundo Fidel? Ou o teatro, sobretudo o Nacional, serve só para se passarem umas horas a ver uns fantoches manietados em vez de actores a dizerem umas coisas que deviam ser diálogos de uma peça mas não passam de amontoados de palavras?
Eu escrevo isto e até parece que me esqueço que, já no Trindade, Carlos Fragateiro fizera da História gato-sapato, com os delírios juvenis de Freitas do Amaral (O Magnífico Reitor, 2000) e os remendos do nacional-cançonetismo feitos manifestação estudantil (O Navio dos Rebeldes, 2002). E agora que se anuncia o regresso de férias de Salazar, para mais escolhido em casting nacional ("um Salazar em cada esquina", não era o que se dizia?) não há quem ponha cobro a este arrivismo estético, cénico e dramatúrgico? A esta leveza e desorientada linha que faz do TNDMII o palco do branqueamento da história? Da promoção do mais básico argumento? Da total incapacidade em criar um acesso à memória que não passe por nivelamento rasteiro e indigno? Não há, neste Estado de direito, quem ainda acredite que o teatro não se limita a criar ficções, mas a interpretar realidades? E que a interpretação desta realidade, porque grosseira, primária, superficial, inadequada e ofensiva, é contrária a tudo aquilo que se defendeu e conquistou ao longo dos últimos trinta anos? Ou o hasta la victoria, só é siempre se acabar a tempo de ainda se apanhar o bar aberto?
bem dito!
ResponderEliminarQue bosta de pseudo-crítica ressabiada. Bah!
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