sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Zapping teatral ou a teatralização dos media?

a propósito da estreia de Sobre a mesa a faca, convidei o Dr. Daniel do Carmo Francisco, docente de Teoria da Comunicação, para uma breve observação do novo espectáculo das companhias Cão Solteiro e Teatro Praga.



O estatuto da linguagem dos media é muito próprio, e teve sempre como objectivo o rigor e a isenção, fugindo daquilo que foi o seu passado como "legado do medo" e de manipulação voluntarista das opiniões. Fundamento das primeiras teorias da comunicação colectiva, a manipulação foi a palavra de luto e aversão de qualquer meio de mass media.

No entanto a linguagem - e os próprios media em todas as suas variantes, estruturas e técnicas -, é uma interpretação de realidades. Isto é, são acontecimentos e realidades dadas sempre em segunda mão; há sempre um fio condutor, um pensamento, uma forma de manipulação de linguagem e de palavra para que audiência ganhe uma informação ou um conhecimento não tendencioso.

Aliás Aristóteles nas suas famosas dissonâncias com Platão, dizia que era muito mais grave e infeliz parecer cometer uma injustiça do que cometer a própria injustiça. E a linguagem dos media ao tentar escapar à etiqueta de manipuladora, esquece-se por vezes da sua origem manipulada.

Sobre a mesa a faca, uma co-produção das companhias Cão Solteiro e Teatro Praga, abre com um eloquente pastiche de entrevistas. Aliás, toda a peça é um pastiche de entrevistas, sentido-se quase um comando na mão para ir controlando os canais do cabo. Mas o controlo não é nosso, não somos nós que temos o comando. Mas ficamos com essa sensação e esse acto, passado um tempo, torna-se incómodo.

Um espectáculo feito de fragmentos de entrevistas - uma das linguagens e dos géneros jornalísticos mais temidos, porque é o que menos se controla já que é sempre uma comunicação a dois -, torna-se uma luta entre aquilo que se quer saber, o que se pensa querer, o que nos é dito ou o que se pensa que se nos quer dizer.

Afinal o comum espectador, até o mais habituado à inovação, mesmo que goste de sentir as franjas a tocarem acaba sempre por preferir que sejam só isso mesmo: franjas. Mas que dizer quando se começa a gostar e se deixa de sentir que se está numa cadeira de um teatro mas que se chegou à poltrona da sala?

Afinal, não há mesa, não há faca, mas ficamos sentados com a faca pronta a bater sobre a mesa, enquanto olhamos talvez o nosso jantar, e pelo canto do olho para um media qualquer. Ficamos a pensar: são eles que nos que querem dizer algo?

Ou é simplesmente mais uma imaterialidade própria das artes cénicas, feita de flashbacks, reversões e amputações de sentimentos e, sobretudo, de confissões? Talvez algo diferente: uma comunicação tripartida entre o significado solto das entrevistas, as imagens, as muito felizes entrevistas aos ídolos do vinil, aos fantasmas do desejo secreto de cada um, o desejo do reconhecimento e da glória... Afinal a entrevista é sempre um reconhecimento de importância pessoal a quem se deu tempo ou cinco minutos de fama.

Não deixa, ainda, de ser inquietante perceber a transmutação de linguagens, não só dos media, mas também a do cinema, da arquitectura, da música, da pintura... E do próprio teatro. A manipulação da linguagem, uma teatralização de um discurso quotidiano, do informativo e, porque não, do desejo do conhecimento da intimidade alheia.

Sobre a mesa a faca será, finalmente, uma proposta para a eleição dos media a oitava arte?


Daniel do Carmo Francisco
Docente de Teorias da Comunicação da Universidade Autonoma de Lisboa. Doctorando e Professor Investigador em Comunicação Empresarial e Institucional da Universidade Complutense de Madrid


Sobre a mesa a faca co.criação: cão solteiro + teatro praga | interpretação: André e. Teodósio, Carlos Alves, Marcello Urgeghe, Paula Sá Nogueira, Pedro Penim e Sofia Ferrão | apoio à dramaturgia: Manuela Correia | figurinos: Mariana Sá Nogueira | cenografia: Nuno Carinhas | execução de figurinos: Teresa Louro, Palmira Abranches e Natália Ferreira | produção e promoção: Pedro Pires | desenho do cartaz e postal: Mariana Sá Nogueira | design gráfico: Triplinfinito


Temporada: 15 de Fevereiro a 5 de Março_20h30 - armazém Hospital Miguel Bombarda | bilhetes: 5€ s/descontos para profissionais, jovens ou idosos.

Informações: 21 887 21 52 | 96 526 47 05 | praga_teatro@hotmail.com

O texto é da responsabilidade do autor, excepto hiperligações e informações adicionais. A análise ao espectáculo será publicada até ao fim da carreira do mesmo.

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