quarta-feira, dezembro 08, 2004

Serviço Público (II)

Transcreve-se o editorial lúcido de Eduardo Dâmaso, sub-director do PÚBLICO. Para quem quiser ler e souber ler.

A Dissolução
Por EDUARDO DÂMASO
Quarta-feira, 08 de Dezembro de 2004

A guerra de versões, comunicados, declarações, justificações e insinuações entre a Presidência da República e o ainda primeiro-ministro tornou-se insustentável. Uma questão que tem a gravidade própria de uma anunciada dissolução parlamentar mereceria um tratamento institucional e político irrepreensível de Jorge Sampaio e de Santana Lopes. Mas não, a Presidência da República tem vindo a afundar-se num calendário surrealista e num silêncio insustentável perante o país. Santana Lopes, pelo seu lado, começou a campanha eleitoral na melhor posição possível, para quem estava à beira da asfixia, controlando danos, fazendo o papel do pobre e humilde primeiro-ministro que tem uma relação amorosa, astral mesmo, com a Pátria mas a quem cortaram incompreensivelmente as pernas, não o deixando, por enquanto, viver tal romance na plenitude.

Jorge Sampaio errou ao não assumir no primeiro instante a total condução do processo em termos institucionais e de explicação aos portugueses do significado político e jurídico da decisão de desencadear os macanismos formais de dissolução da Assembleia da República. Era ao Presidente que competia a ofensiva política e não a Santana Lopes.

O Presidente deveria ter explicado a sua decisão ao país, ou alguém por ele, logo no dia em que comunicou ao primeiro-ministro que tenciona dissolver o Parlamento. Um sintético comunicado da Presidência da República não chega para responder aos muitos porquês que imediatamente se colocaram e cujas respostas não necessitavam dos desenvolvimentos formais - audição dos partidos e convocação do Conselho de Estado - para serem respondidas.

A dimensão do erro foi crescendo à medida que os dias foram passando e estamos agora confrontados com uma história de ficção: a dissolução é um facto que o país tem por adquirido mas o Presidente ainda vai ouvir os partidos e o Conselho de Estado, mais de uma semana depois da audiência com o primeiro-ministro, e só depois assinará o decreto, como se um e outro passos do processo não fossem neste momento actos de pura representação ficcional. Os partidos vão dizer tudo o que já disseram na praça pública e o Conselho de Estado vai exprimir estados de alma pouco mais do que irrelevantes.

Pelo meio desta lentidão presidencial fica a ambiguidade total à volta dos actos do Governo. Não é de gestão mas para o país é como se fosse. O Governo, porém, esforça-se por não ser nem uma coisa nem outra. Dá-lhe jeito estar a prazo para se vitimizar perante o eleitorado mas vai aprovando leis, orçamentos, nomeando e demitindo.

Fica também um primeiro-ministro que se comporta como líder partidário já em campanha, que de manhã fala do país, à tarde do partido, e à noite diz mal de Sampaio. O PSD dá-se ao luxo de dizer que o Estado de Direito democrático está ameaçado.

É óbvio que a actual situação de silêncio presidencial é a que mais convém a Santana Lopes, um político que se alimenta como nenhum outro da vitimização, das conspirações tenebrosas que o perseguem, das conversas - mesmo que cobertas pela necessária respeitabilidade presidencial - que mudam da noite para o dia e escondem segredos e inimigos invisíveis. É esta a agenda que Santana quer para a sua campanha eleitoral e tem sido o silêncio do Presidente a abrir-lhe a porta. No meio de tudo isto onde fica Portugal?

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