quarta-feira, março 08, 2006

Ensaio (1ª parte)

O texto que se segue, da autoria do performer Rogério Nuno Costa, foi escrito sob pedido para publicação neste blog, no âmbito da estreia em Lisboa do espectáculo EUROVISION, do Teatro Praga. O texto foi concebido a partir das notas que o autor tomou para preparação das aulas que deu aos alunos de Artes da Escola Secundária Henriques Nogueira, de Torres Vedras, e aos alunos de Teatro e de Animação Cultural da Escola Superior de Artes e Design nas Caldas da Rainha. Estas aulas surgiram como parte do A8 LAB, um festival de artes performativas da responsabilidade da Transforma que se realizou de 19 a 27 de Novembro em Torres Vedras, onde EUROVISION esteve em residência critiva durante dois meses . O objectivo dessas aulas era o de aproximar as criações em processo da população (conquista de novos públicos). As aulas teóricas eram subordinadas a vários temas caros ao espectáculo, seguia-se o visionamento e a seguir os alunos eram submetidos a um exame no qual lhes era pedido para fazerem um resumo crítico ao espectáculo, com base nalguns conceitos discutidos na aula. O texto baseia-se nessa experiência e no tempo decorrido depois dela e, tal como antes serve de introdução ao espectáculo, que está em cena na Galeria Zé dos Bois até 18 de Março. O texto será apresentado em duas partes.

SOBRE A CRÍTICA DA ORIGINALIDADE
Notas para a compreensão de EUROVISION, do Teatro Praga


por Rogério Nuno Costa

The story is told of an automaton constructed in such a way that it could play a winning game of chess, answering each move of an opponent with a countermove. A puppet in Turkish attire and with a hookah in its mouth sat before a chessboard placed on a large table. A system of mirrors created the illusion that this table was transparent from all sides. Actually, a little hunchback who was an expert chess player sat inside and guided the puppet’s hand by means of strings. One can imagine a philosophical counterpart to this device. The puppet called ‘historical materialism’ is to win all the time. It can easily be a match for anyone if it enlists the services of theology, which today, as we know, is wizened and has to keep out of sight.

Walter Benjamin

aula no espaço T0/Transforma, para os alunos da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha (fotografia: Luís Firmo)

ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)

NOTA ZERO
materiais introdutórios

Alunos. Mesa e cadeiras. Quadro e giz. Caderno de apontamentos. Caneta. Retroprojector apontado a uma parede branca projectando um acetato que diz: “se no início da aula um retroprojector é ligado, no final ele terá que projectar alguma coisa”. Entrevista em audio (suporte: mini-disc ligado a colunas de computador) à dupla Parasitas, subordinada ao tema “A Paródia Moderna”. Reprodução de L.H.O.O.Q. (1919), de Marcel Duchamp (série “pequena” da Taschen). Fotocópias de “Para uma Teoria da Paródia”, de Linda Hutcheon (excertos) e “Behind the Times: the Decline and Fall of the Twentieth-Century Avant-Gardes”, de Eric Hobsbawm (excertos), distribuídas pelos alunos. Pesquisas google feitas com os termos “post-modern”, “post-modernism”, “post-modern skepticism”, “post-modernism crisis”, “death of art” e “teatro praga”. Documentos em adobe pdf: “A Outra Resposta de Tirésias. Sátira, Paródia e Caricatura”, de Carlos de Miguel Mora (Universidade de Aveiro) e “Intertextualidade e Plágio – Questões de Linguagem e Autoria”, de Liliane Christoff (tese de doutoramento, em Português do Brasil). O calhamaço “Art In Theory. 1900-2000”, para o que der e vier. Aulas de Método com Marlon Brando (conseguidas através de metodologias ouija).

aula na Escola Secundária Henriques Nogueira, Torres Vedras (fotografia: Ana Rita Canavarro/Transforma)



NOTA UM
juste une image

Por altura da estreia nos cinemas de Matrix Revolutions, o Prof. Bragança de Miranda escrevia no Jornal de Letras que aquilo que caracteriza a pós-história é essa “leviandade” no uso das imagens. A leviandade de EUROVISION começa com a justeza de um início extremamente simples: uma imagem justa, à qual justamente falta (e por isso é justa) a outra face, ou o seu negativo: por outras palavras, a legenda. O espectáculo é sobre fazer a imagem, criar a imagem, mostrar a imagem, fabricar a imagem, produzir a imagem, desenhar a imagem, reproduzir a imagem, copiar a imagem, confiscar a imagem, multiplicar a imagem, transmitir a imagem, projectar a imagem, plagiar a imagem, roubar a imagem, imprimir a imagem, inverter a imagem, retro-verter a imagem, traduzir a imagem, descodificar a imagem, interpretar a imagem, ler a imagem, escrever a imagem. Ou seja, legendá-la. É um espectáculo leviano porque acredita que as imagens valem pela sua reprodutibilidade técnica e são intocáveis porque substituem mil palavras. E é leviano porque faz da “legendagem” teatro (já lá vamos...). Há um fato de treino colado com fita-cola à parede que não chega a passar da fase de ensaios, por fazer lembrar demasiado uma legenda chamada La Ribot. Legendagem implica exame crítico... A espingarda (imagem) é intocável. Da legenda que a acompanha (Tchekov/retroprojector), faz-se uso e abuso: é mais importante o sublinhado do que aquilo que se sublinha. “Se no início entrei numa sala curiosa, no final tenho de sair esclarecida” (Liliana Silva, Torres Vedras). E então legenda-se. A minha “aula preparatória” é uma legenda em segundo grau, uma legenda daquilo que se legenda, um ready-made aidé. Une chose très duchampienne, portanto.

ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)

NOTA DOIS
à procura da língua perfeita

“Nós, Portugueses, valorizamos muito a nossa língua, mas o que é verdade é que há mais línguas na Europa e até no Mundo” (Ana Filipa Moreira Gonçalves, Torres Vedras). A sequência multi-lingue de Pedro Penim é muito mais uma “manta de retalhos” (imagem sem legenda), do que uma representação filosófica (retalhos referenciais excessivamente legendados). É uma coisa plástica. O Matrix (filme) também é uma coisa plástica. As implicações elitistas, historicistas e individualistas de um retalho des-legendado são outras (conferir as teorias do triângulo desigual de Kandinsky): o fim da história (Fukuyama), a não-infinitude do gesto artístico, a repetição da tragédia que é sempre uma comédia (Marx), a “despressurização” do Ocidente, e etc. Como é que se sai deste túnel? Comendo a merda que herdamos do Pai Nosso Século XX. “No fundo, continuo a ser um fazedor de arranjos, cujo máximo prazer literário é pegar numa melodia recebida – um velho poema narrativo, um mito clássico, uma convenção literária enxovalhada, um pedaço da minha experiência, uma série da New York Times Book Review – e, improvisando como um jazzman dentro das suas restrições, reorquestrá-la para o propósito presente” (John Barth). A língua perfeita jamais poderá ser uma imagem (fabricação); será quando muito uma realidade em segundo grau (legendagem), uma coisa utópica (foi perfeita que disse?), uma coisa duchampiana, uma coisa retalhada. Leviana. Qualquer coisa como: no quadro “Nu descendo as escadas” (Duchamp, 1912), é mais importante o título que o quadro. Pronto, é isso.

ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)

NOTA TRÊS
definição do lugar

EUROVISION acontece num espaço pictórico, muito antes de ser um espaço teatral. Os grandes intérpretes das geometrias transcendentais (Picasso e Duchamp) estão lá, na justa imagem inicial, debaixo das lápides. A tal imagem-copo: meia vazia, meia cheia. Tanto faz. Não interessa saber quem nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha. Interessa, apenas e só, que se formule a pergunta. E se faça a imagem: formalmente, o lugar é o dos neos, dos pós e dos retros (José-Augusto França); conceptualmente, é o lugar da paragem cardíaca (Rogério Nuno Costa) que corresponde aos anos 90, a tal da suspensão céptica que se fez para se (poder) pensar. As mochilas do EUROVISION carregam o peso de cerca de 100 anos de história, qualquer coisa que começa na estética do innovatio (‘bora foder o humanismo) dos anos 10 e acaba na estética do collapsus (‘bora foder o modernismo) do final do século. Qualquer coisa que se inicia com o “Nu descendo as escadas” (por exemplo, e outra vez) e acaba no “Precarious Construction” ou no “Altar to Raymond Carver” (Thomas Hirschhorn, 1997/1999, exemplos óbvios, mas justos). Ainda não podemos falar de teatro (ligar Beckett a Forced Entertainment é lixado), mas já lá vamos. “Também acho que o espaço vazio não significa morte, porque o vazio pode representar o nascimento de algo; talvez a conversa da morte fosse para assustar, mas não resultou” (Rui do Rosário Ribeiro, Torres Vedras). Como fazer teatro não é sinónimo de fazer a história da literatura dramática (como julga a Associação Portuguesa de Críticos de Teatro), façamos o seguinte Kramer contra Kramer:

pormenor de “Precarious Construction” (Thomas Hirschhorn, 1997)

pormenor de “Eurovision” (Teatro Praga, 2005) (fotografia: Rogério Nuno Costa)

NOTA QUATRO
organismo microscópico

E fabricado. Talvez aqui já possamos falar de teatro. Comecemos pelo cliché do “não-lugar”: o viajante utópico Raphael sobrepõe duas imagens da Utopia, das quais uma é a de um lugar, a outra a de um protótipo. A primeira é o retrato que pinta os traços espaciais da individualidade geográfica e histórica; a segunda é o modelo que retém da mesma os traços espaciais que dependem da ordem humana e do sistema das normas culturais. EUROVISION, delimitado espacialmente num quase-quadrado, recusa o lugar a favor do protótipo. A capital da Utopia era “quase” quadrada, assemelhando-se à Jerusalém celeste, cidade cujo comprimento era exactamente igual à largura. Estudando o mapeamento da cidade utópica, conclui-se que “o branco, que cobre os locais políticos no mapa da Utopia, marca precisamente o lugar, vazio, de um nó de conceitos então informuláveis” (Choay). Há na concepção da cidade utópica uma certa espiritualidade, que privilegia a vida, por oposição à morte. A leviandade utópica de EUROVISION existe na construção de um espectáculo que quer parecer um mundo fechado de ligações vívidas e dinâmicas; fora dele estaria a morte, o esquecimento. Um resumo trágico (muito malevitchiano, muito “Quadrado Preto Sobre Fundo Branco”’iano), do jogo de forças interior-exterior, da racionalidade, do espírito concentracionário, da impossibilidade de fuga e do espelhamento. E uma linha que divide as duas faces da mesma moeda (foi Matrix que disse?). Trata-se de um modelo espacial, que não pode assumir uma infinidade de formas, mas uma única apenas, que é “perfeita” (foi utópico que disse?). Essa forma perfeita, porque não existe, só pode tornar-se operacionalizável quando transformada em “instrumento”: e por isso as utopias fabricam-se, ao contrário das sociedades reais. No espectáculo, os “actores” (aqueles que actuam e que são em número de dois, sem ser por acaso...), fabricam, desconfiados, uma utopia teatral, desesperançada. “Ambos os actores são mutuamente cépticos, mas no fim não chegam a conclusão alguma” (Ana Margarida Barata, Torres Vedras). Quem haveria de supor que o fio não representava o muro de Berlim, mas a ligação entre duas cidades? E quem disse que o muro de Berlim não representa a ligação entre duas cidades? Um organismo microscópico é um texto escrito num sítio inaudito. Uma fraqueza feita força (Bragança de Miranda). Um pormenor que é tudo.


ensaio na “Loja Praga”, A8 LAB, Torres Vedras (fotografia: Rogério Nuno Costa)

continua amanhã, incluindo apresentação de referências bibliográficas. Texto e fotos da responsabilidade do autor.

Rogério Nuno Costa nasceu em Amares (Braga), em 1978. É licenciado em Comunicação Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa Frequenta o Mestrado em História da Arte Contemporânea, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Colabora regularmente com a revista DIF. Trabalha como actor desde 1996 e actualmente desenvolve os projectos Vou a tua casa e Fui.

As críticas aos espectáculos de Rogério Nuno Costa podem ser lidas aqui.

1 comentário:

Anónimo disse...

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