sexta-feira, março 25, 2005

(In)acabado

Análise à proposta de Mário Afonso para o 11º LAB
Espaço Re.Al
26 Fevereiro 25 Fevereiro 2005
18h00

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É muito natural aceitar que o criador saiba sempre mais que o espectador. Faz parte do 'contrato' que as duas partes assinam sob o nome espectáculo. Nesse jogo de ilusão, o espectador normalmente cede ao performer a posição de gestor das emoções e envolvimento, até ao momento (quase sempre imperceptível mas existente) em que quem faz 'ganha' quem vê. Nesse momento (que podemos chamar epifania, mas gostaria que fosse antes visto como o estádio máximo da cumplicidade), performer e espectador compõem uma só massa que tem como objectivo último resgatar da efemeridade os objectos artísticos.

Se o performer souber gerir bem os tempos emocionais da proposta que apresenta, o espectador ver-se-á sem fôlego e tenso. O 'alívio' só surgirá no momento dos aplausos, em que performer e espectador trocam olhares cúmplices e reconhecem terem feito um 'jogo limpo', nada efémero e, sobretudo, com mais implicações do que aquelas visivelmente expostas durante a apresentação. No final, tanto uma como a outra parte ficam a saber o mesmo. Ou assim se espera.

No caso das propostas apresentadas no âmbito dos LAB, as coisas não se passam exactamente assim, já que um dos objectivos é, exactamente, questionar o processo criativo e perceber que escolhos se podem atravessar no caminho. Tudo em nome de uma urgência criativa que se quer coerente, definida e contextualizada num sistema que resgate do rame-rame de estreias os espectáculos. Assim, os criadores forçam-se a um teste das suas convicções, em nome de um espectáculo por chegar.

Em Mário Afonso, esta ideia de jogo de ilusão e gestão dos tempos está nitidamente viciada. Não só porque as propostas para os LAB não são espectáculos, como dependem do espectador para tomar novos sentidos. Dispõem-se a essa vulnerabilidade, fazendo das fraquezas forças. Mas Mário Afonso leva mais longe a proposta de experimentação inerente aos LAB para desarmar o espectador naquilo que ele assume como proposta para quem dança.

Mário Afonso não dança, ou antes não reconhecemos nele uma coreografia que nos liberte da apreensão constante. O performer instala-se no espaço para ser observado. Esta é uma proposta cujo leitmotiv se pode definir como 'o outro que me olha'. É, por isso, um trabalho austero, pouco óbvio e interior que depende inteiramente daquilo que o criador estiver disposto a dar. E, em última instância, daquilo que o espectador for capaz de apreender de gestos tão quotidianos quanto inimitáveis.

É uma proposta muito difícil onde Mário Afonso cruza uma apropriação da ideia de laboratório e do próprio trabalho de criação, através da construção material de uma utopia/de um objecto artístico, dramatúrgico e coreográfico. É um trabalho de coreografia dos materiais, das suas dimensões e dificuldades. É, no limite, uma proposta de observação pura, sem questionamento. Mas importa ver, para observar.

O que Mário Afonso faz é claro. Uma cadeira. É esse o resultado da construção que desenvolve em palco através de uma precisão e domínio técnicos. Há uma coreografia de movimentos que recusa a ideia de facilidade. A não utilização de protecções denuncia um estudo e preparação que o espectador não tem. Logo, não é o quotidiano que aqui se apresenta, mas um trabalho sobre o quotidiano. O criador parece perguntar porque haverá de ser diferente uma progressão corporal da progressão de construção material de um objecto. Não é a forma como esse objecto é construído uma outra forma de pensar a sua construção? A cadeira construída por Mário Afonso mais do que um adereço, é um objecto coreográfico. Sobretudo a cadeira em si não é um objectivo, mas uma etapa.

A cadeira não chega a ser usada, já que o performer, depois de terminada a construção (e onde se inclui um curioso teste à capacidade de crença do espectador derivada do facto de possibilidade de falha na construção), se despe e se instala no palco compondo desenhos geométricos com o corpo. Esta proposta não é, portanto, só uma questão, uma cadeira ou um corpo nú. É um desprendimento em relação à construção da coisa. À coisa finita. É uma proposta de observação do grau zero das coisas, do corpo, do espaço e dos objectos.

O corpo (o de Mário Afonso? o da cadeira?) é, assim, um corpo obsceno, porque grosseiro e primário (a cadeira é rude, o corpo do performer imenso); é um corpo descarnado, um corpo-nada, oferecido, exposto, olhado. Entregue para quem quiser nele ver o que melhor conseguir.

A procura de desejo e de saber o que falta (desabafos que Mário Afonso inscreve com serradura no chão), não são mais que vontades de pertencer a um outro mundo que ultrapasse o que se vê, permitindo-se a uma liberdade de interpretação. Em última análise, o que Mário Afonso propõe é o libertar de convenções, sejam elas coreográficas ou dramatúrgicas. Tudo em nome dos objectos que se querem questionados. Mesmo quando se lhes atribuí uma finalidade. Como às cadeiras.


Outras propostas apresentadas no LAB:
Cláudia Dias
Tiago Guedes

Sobre os LAB.

Próxima apresentação:
Ana Borralho e João Galante
30 Abril, 18h00

1 comentário:

Anónimo disse...

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